“Enquanto houver alguém gritando no mundo, sejam mulheres,
afrodescendentes, indígenas, pessoas discriminadas, sempre têm sentido, a
partir da fé, falar e atuar de forma libertadora”, defende o teólogo
Leonardo Boff.
“A Teologia é séria quando toma a sério o
testemunho dos invisíveis, dos desprezados, daqueles que ninguém conta.
Cada pessoa é única no mundo, tem algo a dizer, a mostrar. Ignorante é
aquele que pensa que o povo é ignorante. O povo sabe muito da vida, da
sua luta”, afirmou Leonardo Boff em entrevista concedida, pessoalmente, à
IHU On-Line.
Para Boff, “nosso desafio não é o de criar cristãos,
mas de criar pessoas honestas, humanas, solidárias, compassivas,
respeitosas da natureza dos outros. Se conseguirmos isso é o sonho de
Jesus realizado”. E continua: “há um dito que diz: onde estão os pobres
está Cristo, e onde está Cristo está a Igreja. Só que não é verdade que
onde está o pobre está a Igreja. Ela está mais perto do palácio de
Herodes do que da gruta de Belém. A Igreja precisa ver qual é o seu
lugar na sociedade”.
Leonardo Boff, filósofo, teólogo e escritor é
professor emérito de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. É autor de mais de 60
livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e
mística, entre os quais citamos Ecologia: grito da terra, grito dos
pobres (São Paulo: Ática, 1990); São Francisco de Assis. Ternura e vigor
(8. ed. Petrópolis: Vozes, 2000); Ética da vida (Rio de Janeiro:
Sextante, 2006); e Virtudes para outro mundo possível II: convivência,
respeito e tolerância (Petrópolis: Vozes, 2006).
Confira a entrevista.
IHU
On-Line – Qual a diferença da Teologia da Libertação das décadas de
1970 e 1980 e hoje, com a globalização neoliberal? Ela é capaz de
responder aos desafios contemporâneos?
Leonardo Boff –
A Teologia da Libertação parte do grito dos oprimidos, que hoje são os
pobres. Até 2008 havia 860 milhões de pobres no mundo e a crise
econômica e financeira elevou esse número a um bilhão e 200 milhões. Os
gritos viraram um clamor. Enquanto houver alguém gritando no mundo,
sejam mulheres, afrodescendentes, indígenas, pessoas discriminadas,
sempre têm sentido, a partir da fé, falar e atuar de forma libertadora.
Então, é uma teologia permanente, porque, pela condição humana, todos,
até os mais ricos e equilibrados, carregam suas cruzes: é o medo da
morte, a exposição a acidentes, a perda do filho ou da esposa; não temos
uma vida assegurada. A condição humana é assim e deve ser construída a
cada dia, com sua angústia e opressão. Nesse sentido, a fé cristã
oferece um caminho para a pessoa se liberar, colocando a vida – mesmo
uma vida que fracassou – na palma da mão de Deus, obtendo assim uma
libertação espiritual. A mensagem de Jesus é libertadora por isso. E uma
teologia que não produz esse efeito humanizador não pode ser chamada
herdeira ou que está no legado de Jesus.
IHU On-Line –
Como compreender que o cristianismo, que nasceu no primeiro mundo, hoje
não faça parte deste universo europeu, ou ao menos não tenha tanta
relevância entre ele, e se demonstre mais vivo no terceiro mundo?
Leonardo Boff –
Primeiro, há um problema de estatística. Mais da metade dos cristãos e
católicos vive no terceiro mundo. De fato, é uma religião do terceiro
mundo, embora as origens sejam no primeiro. E se falarmos em termos de
criatividade, de presença, veremos que a criatividade não está no
primeiro mundo, onde temos culturas agônicas, que lentamente estão
“descendo a rampa” da vida; são civilizações que não cultivam a
esperança porque não veem qual é a esperança para elas. No fundo,
conquistaram tudo o que queriam, dominaram o mundo, impuseram suas
ideias, suas filosofias, seus valores, sua música, e agora dizem que são
infelizes. Isso significa que o ser humano não só tem fome de pão, de
bens materiais, mas também tem fome de beleza, de comunicação, de amor,
de solidariedade. E esses valores estão presentes principalmente entre
os pobres. Se há uma coisa que os pobres guardam é a cultura da
solidariedade, a alegria de viver com o pouco que têm. Isso aparece até
nas novelas da Globo, como essa chamada Avenida Brasil: onde estão a
vida, a solidariedade e a alegria? Não estão na alta burguesia; estão na
favela do Divino. Nesses lugares da Ásia, da África, da América Latina,
o cristianismo se mostra criativo. Ele se encarna nas culturas locais, e
então passa a ter um rosto diferente, músicas e símbolos diferentes.
Agora estão aparecendo novos santos e mártires que são nossos. E tem a
questão das mulheres daqui também. E não é só o fato de serem mulheres
fazendo teologia, porque a mulher americana rica também a faz. Aqui
temos a mulher pobre que não quer ingressar no mundo dos ricos, mas quer
ser solidária. Então, faz uma teologia feminina diferente. Elas até
brigam com as americanas, por exemplo, fazendo a crítica a elas, dizendo
que não adianta fazer teologia só para integrar as mulheres, pois
estarão apenas contribuindo para engrossar o mundo dos opressores. As
latino-americanas pedem solidariedade a elas como mulheres e como
oprimidas.
Se não for isso, não será uma verdadeira Teologia da
Libertação.
IHU On-Line – A partir da vivência, na prática
da Teologia da Libertação, como o senhor define que deveria ser uma
teologia séria?
Leonardo Boff – A
Teologia é séria quando ela toma a sério o testemunho dos invisíveis,
dos desprezados, daqueles que ninguém conta. Cada pessoa é única no
mundo, tem algo a dizer, a mostrar. Ignorante é aquele que pensa que o
povo é ignorante. O povo sabe muito da vida, da sua luta. É um saber,
como diz Camões, “de experiências feito”. Somos sérios quando damos
valor ao que o povo diz, que não são palavras, mas dramas e gritos. Em
segundo lugar, é preciso saber formular isso de uma maneira rigorosa e
universal, de forma que todos possam entender.
IHU On-Line
– Quais os limites da Teologia no mundo hoje? Que desafios ela tem a
enfrentar no século XXI, considerando a contribuição que pode oferecer à
sociedade contemporânea, principalmente à crise ecológica e ambiental?
Leonardo Boff –
A primeira tarefa da Teologia e das igrejas é elas assumirem que são
cúmplices do mundo a que chegamos hoje. Isso significa que houve algum
erro na nossa transmissão da fé, na nossa vivência bíblica, pelo qual
não conseguimos evitar a crise ecológica e a crise econômica mundial.
Não temos a chave da salvação, somos parte do problema. E com muita
humildade, precisamos renunciar a toda a arrogância de que “temos a
palavra da revelação e então sabemos”. Nós não sabemos. Temos que nos
unir a todos os grupos, começando pelos pobres – que têm sua sabedoria
–, e depois com o discurso das ciências, das outras igrejas, com todos
os discursos que criam sentido. Além disso, é muito importante sentir-se
um discurso junto com os demais, não tendo exclusividade, afirmando que
“nós temos a revelação; nós temos a chave”, porque, na verdade, não a
temos. Quando a Igreja teve essa arrogância e assumiu o poder, foi um
fiasco. Governou mal, até 1890 ainda havia pena de morte nos estados do
Vaticano, além de cometer grandes erros históricos contra a modernidade e
os direitos humanos. Então, ela não pode apresentar títulos de
credibilidade. Primeiro, precisa reconhecer que pode aprender no diálogo
e que pode dar uma contribuição a partir do que vem do exemplo de
Jesus. Nosso desafio não é o de criar cristãos, mas de criar pessoas
honestas, humanas, solidárias, compassivas, respeitosas da natureza dos
outros. Se conseguirmos isso é o sonho de Jesus realizado.
IHU On-Line – Quais as principais ameaças que pesam sobre nosso futuro?
Leonardo Boff –
São dois blocos de ameaças. Um vem pela máquina de morte, que é nossa
cultura militarista, que criou um tal número de armas nucleares,
químicas e biológicas que pode destruir muitas vezes toda a vida do
planeta. São armas muito deletérias, que estão em segurança, mas nunca
segurança em absoluto. Vimos isso em Chernobyl e Fukushima. Além disso,
temos as nanotecnologias. A guerra cibernética pode ser de alta
destruição. Trata-se de uma guerra não declarada, de extrema violência e
que pune os inocentes. O segundo bloco de ameaças é aquilo que nosso
processo industrialista fez nos últimos 300, 400 anos, com a sistemática
agressão à Terra, aos seus bens, seus recursos. Chegamos a um ponto em
que desestabilizamos totalmente o sistema Terra, e a manifestação disso é
o aquecimento global. Para repor o que tiramos da Terra em um ano, ela
precisa de um ano e meio. Então, a Terra já está exterminada.
Estamos
alcançando uma temperatura perto de 2º C e a comunidade científica
norte-americana alertou para o fato de que, com a entrada do metano, do
degelo das camadas polares e outros fatores, a Terra vai se aquecendo
devagar e, de repente, a febre de 37º C pula para 45º C. Com esse
aquecimento abrupto, a vida que conhecemos hoje não vai subsistir, nem
animal, nem vegetal, nem humana. Como temos tecnologia, podemos criar
pequenos oásis refrigerados para grupos de seres humanos que,
seguramente, vão invejar quem morreu antes, tão miserável será a vida.
Isso pesa sobre a humanidade nos próximos decênios e ninguém acredita
nisso, porque vai contra o sistema da acumulação, contra o capitalismo,
contra as grandes empresas. Os intelectuais que têm algum sentido ético
precisam falar sobre isso.
IHU On-Line – Em que situações de nossa sociedade mais se pode ver o Cristo Crucificado?
Leonardo Boff –
Há um velho dito da tradição cristã que diz: onde está o pobre, aí está
Cristo. Hoje temos que olhar em cada cidade do terceiro mundo, os
grandes cinturões de miséria, as favelas. O cristão que toma a sério a
percepção de que Cristo está onde o pobre está tem que visitá-lo. Não
basta identificar que lá tem uma favela. É preciso ir até lá, conversar
com as pessoas, ver como é possível ajudá-las a se organizar melhor. Há
outro dito que diz: onde estão os pobres está Cristo, e onde está Cristo
está a Igreja. Só que não é verdade que onde está o pobre está a
Igreja. Ela está mais perto do palácio de Herodes do que da gruta de
Belém. A Igreja precisa ver qual é o seu lugar na sociedade.
IHU On-Line – Em que sentido o capitalismo pode ser apontado como anticristão?
Leonardo Boff –
Em primeiro lugar, o capitalismo é antivida. Ele assassina as vidas
humanas para acumular. Para que alguns tenham qualidade de vida, muitos
devem ter péssima qualidade de vida. E isso é injusto. E tudo o que vai
contra a vida acaba sendo contra aquele que disse: “Eu vim trazer vida e
vida em abundância”. Por isso é anticristão. E isso custou muito aos
cristãos reconhecerem, porque as igrejas se instalaram muito bem dentro
do sistema capitalista. A Igreja teve dificuldade de condenar, pois o
capitalismo não nega a Igreja, nem a religião. Pelo contrário, defende a
Igreja e a moral. Só que, na prática, nega tudo isso. E essa é a grande
ilusão da Igreja, pois o capitalismo passa por cima de todo mundo, sem
solidariedade. Nele, só o forte ganha.
IHU On-Line – Baseado em que o senhor afirma que os Estados Unidos é o grande terrorista mundial?
Leonardo Boff –
Na prática ele é o grande terrorista porque, na América Latina, apoiou
todas as ditaduras e participou ativamente de atentados, sequestros de
pessoas, fornecendo informações. E continua com essa estratégia, que é a
estratégia do império. Onde há uma oposição, ele vai e destrói. Só me
admiro que não conseguiu eliminar ainda Hugo Chávez, na Venezuela, nem
Fidel Castro, mesmo tentando por 17 vezes, sem resultado. Os Estados
Unidos sempre usa a violência militar para se impor. E faz isso em todas
as partes, como fez na Líbia, por exemplo, com os aviões não pilotados.
Acredito que assim que passar as eleições fará uma intervenção na Síria
com aviões não pilotados também.
IHU On-Line – Independentemente se Obama fica ou não?
Leonardo Boff –
Independentemente. Até o próprio Obama. Porque eles não vão segurar
Israel e também não vão liquidar com o Irã. Então, a arma não é a
diplomacia e a busca de caminhos de paz, mas a arma da submissão. E eles
são fortes, hoje, não na economia – pois a China é mais –, nem na
tecnologia – o Japão e outros países são mais –; eles só têm o domínio
militar do mundo, com a possibilidade de matar a todos. Em nome disso,
submetem todo o mundo. Não há ninguém que se oponha ao império, a não
ser Venezuela, Cuba e Coreia do Norte. Todos os demais, inclusive o
Brasil, fazem inclinação aos Estados Unidos. É um império cujo imperador
é afro-americano, mas com a mesma perversidade de Bush e outros, porque
o projeto não mudou.
IHU On-Line – O senhor disse que reconhecer a Igreja de Roma como a única verdadeira é um erro teológico. Por quê?
Leonardo Boff –
É um erro teológico porque supõe o conceito reducionista de Deus, como
se Ele dissesse: “Esses são meus filhos e aqueles não são; essas são
minhas criaturas queridas e aquelas são filhos abandonados”. Isso não
existe para Deus. Todos nasceram do seu coração. Deus acredita em todos
os seres humanos. Todos são filhos e filhas, não só os batizados, que
por acaso nasceram no Ocidente. Então, uma Igreja que não faz isso se
opõe a Deus.
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