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segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O frade, o jagunço e a morte do Estado Democrático de Direito




“Se é procissão que me fazem

Mudou muito a liturgia:

Não vejo andor para o santo,

Nem há nenhum santo à vista.

Vejo muita gente armada,

Vejo só uma confraria.

Talvez seja só um enterro

Em que o morto caminharia,

Que não vai entre seis tábuas,

Mas entre seis carabinas.

(…)”

Estes instigantes e emblemáticos versos da epígrafe são retirados da obra de João Cabral de Melo Neto, “Auto do Frade: Poemas para vozes”, que retrata, com maestria, o último dia de Frei Caneca (13/1/1825), um dos mais ilustres e dignos revolucionários da história do Brasil, condenado à morte por ser um dos líderes da Confederação do Equador de 1824.

Mas bem que poderia ser o diálogo entre o Estado Democrático de Direito e os 61 senadores que decretaram a sua morte no dia 31 de agosto de 2016, com o fim da farsa do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Ao cassarem o mandato da presidente Dilma — legitimamente sufragado pelas urnas em 2014 —, cassaram o Estado Democrático de Direito, duramente conquistado com a Constituição Federal (CF) de 1988; a cassação dela representa apenas o trampolim para os reais objetivos dos coveiros da cidadania, serviçais do capital: o fim de todas as estruturas políticas e sociais para a construção da Ordem Social, fundado no primado do trabalho, tendo como objetivos o bem-estar e a justiça sociais, conforme preconiza o Art. 193 da CF.

No caso atual — o do impeachment do Estado Democrático de Direito —, os seus algozes, representados pelo Congresso Nacional e pelo Poder Judiciário, que o avalizou e referendou, fizeram-lhe uma falsa profissão, cercada de todas as mais vis mentiras e subterfúgios, com uma única finalidade: enterrá-lo, de preferência, por todo o sempre.

O morto, no caso, o Estado Democrático de Direito, caminhou para o cadafalso, não entre seis carabinas — como o fez Frei Caneca —, mas, sim, entre 367 deputados federais que admitiram o pedido de impeachment, 61 senadores que o julgaram procedente e o Supremo Tribunal Federal (STF), que garantiu a sua execução sumária.

Na execução de Frei Caneca, o carrasco negou-se a enforcá-lo, resistindo a toda sorte de sevícias e espancamento, para cumprir o seu ‘dever’ legal; por isto, formou-se, por coerção, um pelotão de fuzilamento. Na execução do Estado Democrático de Direito, os carrascos — deputados e senadores — executaram-no sem nenhum constrangimento, fazendo-o com um prazer mórbido, hipocritamente, em nome da ética, da moralidade e de tudo mais que puderam falsear.

Segundo o escritor irlandês, Oscar Wilde, “A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”.

Às palavras do citado escritor, faltou dizer que a imitação da arte, pela vida, às vezes se dá de forma tacanha e grosseira, mostrando-se a vida muito mais cruel do que a arte.

Para comprovar essa assertiva, basta que se compare o impeachment do Estado Democrático de Direito do Brasil com a obra prima de Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, especialmente, no julgamento do jagunço Zé Bebelo pelos demais componentes do bando.

Nesse julgamento, Joca Ramiro, que era o chefe do bando, formou o seu Conselho de Sentença (Júri), composto por Sô Candelário, Hermógenes, Ricardão, Titão Passos e João Goanhá. “Reunidos no meio do eirado, numa confa”, tem lugar o julgamento. “Zé Bebelo não estava aperreado. Tomou corpo, num alteamento — feito quando o perú estufa e estoura — e caminhou em direitura.”

Ao iniciar o julgamento, Joca Ramiro (“Juiz”) disse a Zé Bebelo: “Lhe aviso: o senhor pode ser fuzilado, duma vez. Perdeu a guerra, está prisioneiro nosso…”. Ao ouvir esta ameaça, Zé Bebelo bradou: “Se era para isso, então, para que tanto requifife?’’ Em tréplica, por assim dizer, Joca Ramiro contestou-lhe: “O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei”. E, em réplica de tréplica, Zé Bebelo asseverou: “Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foi novo”.

O primeiro a votar — em voto aberto, como no Senado, no impeachment do Estado Democrático de Direito — foi Hermógenes, que sentenciou: “Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar este cujo, feito porco. O sangrante… Ou então botar atravessado no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele — a ver se vida sobrava, para não sobrar! (…) Cachorro que é, bom para a faca. (…) Dele é este Norte? Veio a pago do Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos… Merece ter vida não. Acuso é isto, acusação de morte. Diacho, cão!”

Em seguida, Sô Candelário desafiou Zé Bebelo para um duelo à faca. O juiz, Joca Ramiro, indeferiu essa proposta e afirmou-lhe: “Agora é a acusação das culpas. Que crimes o compadre indica neste homem?”. Sô Candelário, serenamente, respondeu-lhe: “Crime?… Crime não vejo. (…) Veio guerrear, como nós também. Perdeu, pronto! A gente não é jagunços? A pois: jagunço com jagunço — aos peitos, papo. Isso é crime? Perdeu, está aí feito umbuzeiro que boi comeu por metade… Mas brigou valente, mereceu… (…) o que acho é que se deve de tornar a soltar este homem”.

O terceiro a votar foi Ricardão, exarando a seguinte sentença capital: “ (…) Zé Bebelo veio caçar a gente, no Norte sertão, com mandadeiro de políticos e do Governo, se diz até que a soldo… A que perdeu, perdeu, mas deu muita lida, prejuízos. (…) Dou a conta dos companheiros nossos que ele matou, que eles mataram. Isso se pode repor? E os que ficaram inutilizados feridos, tantos e tantos… (…) A gente não tem cadeia, tem outro despacho não, que dar a este; só um: é a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada”.

O quarto foi Titão Passos, que sentenciou: “Este homem não tem crime constável. (…) Ah, eu, não. Matar, não”. E, por último, João Goanhá, que corrobora as palavras de Sô Candelário e Titão Passos: “(…) meu voto é com o compadre Sô Candelário, e com meu amigo Titão Passos, cada com cada… Tem crime não. Matar não. Eh, dia!”.

Por maioria, Zé Bebelo foi absolvido e desterrado para Goiás para enquanto Joca Ramiro vivesse, como ficou registrado na sentença oral.

Como se vê, os personagens da obra de Guimarães Rosa mostraram muito mais hombridade e decência do que os senadores que decidiram pela morte do Estado Democrático de Direito; é de todo lamentável que estes não tenham mostrado a mesma ética daqueles, inclusive dos que votaram pela sentença de morte de Zé Bebelo, pois que, para tanto, não se esconderam sob nenhum pretexto e/ou capa de moralidade; fizeram-no por vingança, e nada mais.

Um dos principais líderes da Revolução Francesa de 1789, Danton, ao ser arguido pelo Juiz de Instrução, do Tribunal Revolucionário, que o condenou à guilhotina, sobre o seu endereço, redarguiu: “(…) em breve; o nada. Ao depois, o panteão da história”.

Com os senadores que votaram pelo impeachment acontecerá exatamente o contrário, pois que, em breve, serão tratados como valentes heróis pelos seus iguais, pelo capital e seus capatazes. Porém, ao depois, indiscutivelmente, irão para o lixo da história. Lugar no qual a maioria sempre esteve.

Apesar deles, com certeza, a cidadania não perecerá. Como bradou o poeta Castro Alves, no magnífico poema “O Livro e a América”: “(…) num poema amortalhada, nunca morre uma nação”.

Como fecho destes singelos comentários sobre o mais trágico desfecho de todas quantas farsas já se materializaram no Brasil e que se contam às dezenas, nada melhor do que recado de João Cabral de Melo Neto, nos realçados poemas, sentenciado, para a eternidade, nesta estrofe:

“ Ser fuzilado, é dignidade

do militar, mais que castigo.

Fuzilado assim, sem direito,

recebe mais que o pedido.

Dizem que a forca reagiu,

pegou estranho reumatismo.

Perdeu a honra de enforcar

de seus patrícios o mais digno”.


*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee


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