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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

“O País está apostando na formação de máquinas” diz professor da UNIFESP



Juvenal Savian Filho, professor de Filosofia da Unifesp, aponta prejuízos da educação tecnicista do novo Ensino Médio e da não obrigatoriedade de Filosofia


Se a Medida Provisória da reforma do Ensino Médio vingar, a próxima leva de alunos brasileiros a se formar na etapa terá, muito provavelmente, noções de Filosofia e Sociologia muito parecidas com aqueles que estudaram na época do regime militar, quando, em 1971, uma lei praticamente extinguiu as disciplinas da escola, substituindo-as pela patriótica Educação Moral e Cívica (EMC).

Com o mote de flexibilizar o currículo, a MP prevê a diminuição do número de disciplinas obrigatórias no Ensino Médio, entre elas Filosofia, Artes, Sociologia e Educação Física. Apesar do MEC ter garantindo que o conteúdo não será eliminado, ficando sujeito ao que estiver previsto na futura Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a decisão é controversa.

Para Juvenal Savian Filho, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal de São Paulo, na prática, “só haverá Filosofia nas escolas em que houver professores dessa disciplina e que lutarem por seu direito de continuar a existir”.

Em entrevista ao Carta Educação, o professor alerta para os prejuízos de uma educação tecnicista, que nega a modernidade da reflexão e a abertura ao espírito cosmopolita. “As ‘máquinas humanas’ funcionam bem só até certo ponto. Se suas necessidades mais profundas não forem atendidas com cultura, reflexão, arte, teremos muitos outros problemas, entre eles a desilusão, a falta de sentido, a violência, o ódio, o extermínio dos diferentes e tantas outras mazelas”, diz.

Carta Educação: É sabida a necessidade de repensar o modelo de Ensino Médio no Brasil. No entanto, uma reforma via Medida Provisória (MP) impossibilitou a discussão entre os principais atores da área. Quais os prejuízos disso?

Juvenal Savian Filho: Os prejuízos são vários, a começar do reforço da mentalidade autoritária que caracteriza a sociedade brasileira: boa parte de nosso povo e a imensa maioria dos políticos brasileiros têm uma enorme dificuldade em abrir-se de maneira adulta ao debate, ao espírito de contradição e à autocrítica; preferem continuar vivendo sob a proteção de “atos de autoridade”. Uma MP feita esta é mais um gesto autoritário que reforça uma submissão cega em nome de uma ilusória e perigosíssima confiança em “governantes fortes”. Além disso, ela é um desrespeito pela sociedade civil e pelos diálogos que já existem. Não quero usar a nomenclatura do “golpe”, mas essa MP é do registro de um golpe: ela pode ser legal (do ponto de vista jurídico), mas é radicalmente ilícita, porque é profundamente antidemocrática.

CE: Como o senhor enxerga a reorganização do currículo em cinco áreas de conhecimento (linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional)? O estudante que escolher pela última ou por qualquer outra área não correrá o risco de ter uma educação “especialista” demais, restringindo sua visão e entendimento de mundo?

JSF: Organizar os saberes por grandes áreas não tem nada de ruim em si mesmo. Mas também nem de bom. O real sentido dessa organização dependerá do modo como ela será feita. Meu receio é que ela seja uma porta para a formação de mão-de-obra técnica, sem espírito humanista, sem abertura à cultura. Além da especialização precoce, os jovens serão obrigados a viver sem o que nos caracteriza como seres humanos: o espírito de reflexão e de produção cultural; e quem se dedicar a isso (escolhendo a área de ciências humanas, por exemplo) será visto como um ser de outro mundo, pois os padrões de orientação serão a produção técnica, o pensamento especializado, a economia, a estratificação social – coisas em que nem os países mais ricos apostam mais. Nosso País está retrocedendo mais de um século em termos de visão educativa.

CE: Entre os conteúdos que deixam de ser obrigatórios no Ensino Médio estão Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia. Segundo o MEC, o conteúdo dessas disciplinas não será eliminado, mas ficará sujeito ao que estiver previsto na futura Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Na prática, o que isso significa para o ensino de Filosofia? A disciplina ficará negligenciada em relação às demais?

JSF: Ao deixar o futuro dessas disciplinas na dependência do que ocorrerá com a BNCC, a equipe atual do MEC quis atacar a LDB. E conseguiu. A menos que a MP seja revertida. Na prática, só haverá Filosofia nas escolas em que houver professores dessa disciplina e que lutarem por seu direito de continuar a existir. É um retrocesso inquestionável, embora com aparência de coisa boa. Em vez de entrar na modernidade da reflexão, da abertura ao espírito cosmopolita, tal como inclusive a UNESCO elogiava com o retorno da Filosofia no Ensino Médio brasileiro [Sociologia e Filosofia eram obrigatórias no currículo brasileiro até 1971 quando foram banidas por quase quatro décadas pela reforma educacional do regime militar], a equipe do MEC parece ter se formado no século XIX ou estar a serviço dos patrões do século XIX.

CE: Como fica a formação de professores diante dessa mudança? Na MP está descrito que a contratação poderá ser feita sem a necessidade de concurso público, isso é positivo ou negativo?

JSF: Se vivêssemos no melhor dos mundos, seria bom, pois pode haver autodidatas. Não há dúvida. Mas estamos no Brasil que voltou para o século XIX. Talvez o MEC tenha previsto que, com as novas mudanças, haverá ainda menos pessoas interessadas em ser professor. Além de desvalorizados, os professores serão transformados em instrutores técnicos, isso vai desanimá-los ainda mais. Haverá então debandadas de professores, que irão para outras áreas. Mas o MEC, então, já prevê a solução: contratar outros instrutores técnicos, mas que não precisarão ter a formação acadêmica, esclarecida e humanista que, em princípio, todo professor deveria ter. Com isso poderá continuar publicando estatísticas positivas.

CE: A falta de compromisso com essas áreas é um exemplo da falta de olhar crítico sobre o sistema escolar? Quais os prejuízos de não introduzir os jovens à Filosofia (e Sociologia)?

JSF: O prejuízo é muito claro. Trata-se simplesmente da falta de acesso ao que há de mais humano em nós: a reflexão esclarecida e humanista, o autoconhecimento e a autocrítica, a busca de compreensão de nossos semelhantes (e de compaixão), entendimento das dinâmicas que formam a vida em sociedade. Em vez disso, nosso Brasil está apostando em técnicos, em mão de obra especializada, em gente que constrói o progresso. Não há nada de mal nisso. Pelo contrário. Aliás, segundo bons sociólogos, é um fato a necessidade de melhorar o preparo técnico da mão-de-obra no Brasil. No entanto, ao retirar ou diminuir ainda mais o ensino de disciplinas como Filosofia, Artes e Sociologia, o nosso país está apostando na formação de máquinas, não na formação de seres humanos. Mas não nos iludamos, as “máquinas humanas” funcionam bem só até certo ponto. Se suas necessidades mais profundas não forem atendidas com cultura, reflexão, arte, teremos muitos outros problemas, entre eles a desilusão, a falta de sentido, a violência, a falta de amor, o ódio, a anulação e o extermínio dos diferentes e tantas outras mazelas. O Brasil precisa decidir que tipo de futuro quer construir.


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