Thiago de Mello, 91, Poeta da Floresta.
A história é poética. Não poderia ser diferente. Personagens principais: um poeta e uma poesia. Thiago de Mello,
ainda moço, está preso em uma cela, “muito estreita”, lembra ele. E,
pelo tom de sua voz, podemos até preencher os espaços vazios do relato e
imaginar uma luz sombria; um policial resvalando o cassetete nas grades
enferrujadas; paredes com pintura desvanecida pelo tempo, inscrições e
até mesmo com aqueles risquinhos de contagem do tempo.
A entrevista é de Roney Rodrigues, jornalista, publicada por Outras Palavras, 02-04-2017.
Estamos em 1968. Os militares estão no poder e o poeta “rodou” depois de participar da Passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro.
É certo que ele pensa que se fodeu e que a incerteza sobre o que o
aguarda nas próximas horas o consome. Mas ele lê na parede: “Faz escuro
mas eu canto porque a manhã vai chegar”. Dá também para imaginar como
seus olhos se iluminaram e até ouvir uma trilha sonora em crescente.
Afinal, é seu poema épico, “Estatuto do Homem (Ato Institucional Permanente)”,
que escreveu em uma noite chilena de 1964, renunciando ao seu posto
diplomático (era, então, adido cultural no Chile) após os militares brasileiros tomarem o poder e publicarem o Ato Institucional nº 1.
Mas, enquanto Thiago de Mello me conta essa edificante história sobre seu famoso poema, só penso em um Ford EcoSport.
Aquela caminhoneta percorrendo cenários idílicos e despovoados em uma
propaganda da TV. Uma voz, em tom grave, ao fundo, declamava o Estatuto
do poeta amazonense. Pelo menos, foi assim que, na infância, aprendi a
admirá-lo: em um comercial de carro. Queria saber quem era aquele cara
que falava que as janelas deveriam ficar sempre abertas para o verde e
que poderíamos brincar com os rinocerontes.
Ouço a história e, enquanto decido se conto ou não sobre isso de poesia/EcoSport, faço um comentário trivial.
Eis a entrevista.
Então o senhor chegou a ser preso na época da ditadura…
Eu fui preso, mas não me gastaram, não. Fiquei um mês e meio só, interrogatório, tal isso, tal aquilo.
Essa conversa aconteceu no ano passado. Thiago de Mello visitava São Paulo para comemorar seus 90 anos – segundo ele, completados em 30 de março de 2016 com “disposição renovada”. O Poeta da Floresta, amazonense de Barreirinha, vive atualmente à beira do rio Andirá, a 330 quilômetros de Manaus, e seria homenageado pela Biblioteca Mário de Andrade.
Essa conversa aconteceu no ano passado. Thiago de Mello visitava São Paulo para comemorar seus 90 anos – segundo ele, completados em 30 de março de 2016 com “disposição renovada”. O Poeta da Floresta, amazonense de Barreirinha, vive atualmente à beira do rio Andirá, a 330 quilômetros de Manaus, e seria homenageado pela Biblioteca Mário de Andrade.
Estávamos no lobby de um hotel do centro; ele vestia branco, calças e
camisa, combinando com sua cabeleira, o que lhe conferia ares
messiânicos. Perguntou a minha idade e, como se avaliasse minha
juventude, chacoalhou a cabeça.
Eu pertenço a uma geração em que os editores queriam valorizar o escritor-moço e corriam atrás. O José Olympio [que fundou a editora homônima, em 1931] a [editora] Brasiliense com o Caio Prado Júnior, Péricles Eugênio [da Silva Ramos, editor de diversas antologias], José Paulo Paes [da editora Cultrix]. Hoje tem a 7Letras
[editora carioca, uma das pioneiras da “impressão por demanda”] em que
um moço como você tem que pagar para publicar. Ninguém publica mais poesia porque a alma do negócio não é mais o sonho, mas o lucro.
Eu também balancei a cabeça, em resposta, condescendente. Ele continua.
Mas sonhar só vale quando se tem os pés cravados no chão. Eu posso
sonhar de levar vocês dois [está presente também seu assessor de
imprensa] para a floresta: vocês entram no coração da floresta comigo e,
dali a pouco, vocês estão até namorando uma cabocla.
Um sonho possível. Só ter milhas para comprar a passagem de avião.
É. Vamos trabalhar?
Vamos. É meio clichê, eu sei, falar que “há muitos brasis”.
Mas o senhor está agora aqui, no centro de São Paulo, sendo que há dois
dias estava em uma cidadezinha do interior do Amazonas. Viu – e vê –
esse contraste. Qual sua impressão desses brasis?
Quero que tu saias da terceira pessoa do singular e eleve-se. Subas
para a segunda, para o tu. Na floresta, quando vou sair para o barco,
vêm as crianças e falam: “poeta, poeta, tu me levas pro outro lado?”.
Mas isso na cidade de São Paulo é difícil.
Acho que a resposta que eu tenho para ti é que essa variedade, diversidade, só valoriza essa sociedade humana chamada Brasil. Porque a gente a encontra no lugar mais diferente – e para usar uma palavra pobre e infeliz do ponto de vista de uma sociedade capitalista – “mais atrasado”, como, por exemplo, essa pequena comunidade no meio da floresta onde eu vivo – chamada Freguesia do Andirá, nome antigo dado pelos portugueses – e em São Paulo, cidade considerada a maior metrópole da América Latina.
Aconteceu alguma coisa em São Paulo. Para começar: o Mário de Andrade
viu em um seringueiro dormindo um homem igual a ele e ficou espantando!
Ele não sabia que os homens da floresta que cortavam a seringueira para
tirar leite também dormiam cansados e, quando viu isso, pensou: “ué,
ele é igual a mim”. Mas, quando Macunaíma vem para cá, eles se encontram.
A primeira vez que sai da floresta – com 15 anos de idade, para ir pro Rio de Janeiro porque lá [no estado Amazonas]
não havia faculdade – eu me espantei: tem bonde aqui! Essa diversidade
valoriza, ao invés de confundir, em um difícil processo de aculturação. É
difícil. Veja: a criança pergunta à mãe: “por que a gente não tem essas
coisas aqui também?”. Vê, na televisão e na internet, a cidade e a
selva: aqui tem metrô e lá só tem canoa! De vez em quando, aparece um
motor rabeta: essa é a máxima velocidade para eles.
Isso tudo enriquece a sociedade humana dentro da qual a gente vive e
trabalha para que seja uma sociedade humana solidária. Estamos longe de
ser, mas cada um de nós faz a sua parte. A minha é a palavra escrita.
Meus versos. Meus pensamentos. Meus sentimentos. Aproveito para dizer
que eu sou um poeta que, cada vez mais, acredita que não há uma
separação formal e infeliz entre o sentimento e a inteligência.
É, uma oposição muito trabalhada na história, não é mesmo?
Isso! Para começar, os dois são cérebro. O sentimento não está no
coração. Aqui [dá duas batidinhas no peito, com a mão espalmada] está o
músculo cardíaco que controla as coronárias, os vasos, a circulação
correndo pelas artérias. Inteligência está aqui [cutuca com o indicador a
fronte]. E sentimento também. Tanto que muita gente morre de infarto
com gol do Corinthians.
No seu trabalho estão sempre presentes a questão amazônica e a
integração latino-americana. É um sonho antigo a busca pela “Pátria
Grande”, vem mesmo antes de Bolívar. Mas como superar as feridas
coloniais? Parece que o Brasil dá as costas para a América Latina.
O trabalho pioneiro que iniciei como adido cultural das embaixadas do Brasil em países da América Latina
– que eu chamei de integração cultural – era muito mais amplo. Era a
ideia de que um país rico pudesse ajudar um país pobre, liberando
impostos e integrando mão de obra. Certas riquezas capitalistas da
construção industrial ficaram somente no campo da ciência. Quando eu
estava no Chile, embora eu tivesse ajuda do próprio governo chileno e da embaixada do Brasil, fazíamos inúmeras reuniões com representantes da América Latina.
Éramos pioneiros. Falávamos que éramos – e continuamos a ser – um
continente que não se conhece. Um continente cujas relações são só em
nível de governo e de ministérios da economia. Os verdadeiros valores
culturais de cada país não estão na diferença de idioma que existe entre
países de língua hispânica, tanto que na Venezuela ninguém sabe nada do Peru e no México não se sabe nada do Equador. É preciso afirmar isso com esperança, mas dizer a verdade: não nos conhecemos.
Tratamos de fazer isso [integrar os países] através dos escritores,
dos poemas, dos cantores, dos músicos e consegui, depois de seis meses
de integração, trazer o Pablo Milanés [cantor e compositor cubano] para cantar em São Paulo e no Rio de Janeiro. Também trouxemos escritores numa ação conjunta. Fizemos a promoção do Chile no Brasil, mandando vários arquitetos, escritores e jornalistas para lá.
Integrar é conhecer. Depois da fase de se conhecer, se passa para uma
maior: a conscientização da necessidade de integrar. Essa integração
que se pretende em nível continental sequer é feita entre os estados
brasileiros. As universidades, por exemplo, não têm um nível de
integração. Vivemos ilhados.
Por que a gente não se conhece?
É cultural, algo que veio também do nosso passado colonial. Embora naquele tempo do Brasil Colônia se conhecesse muito de Portugal e, hoje, se conhece pouco. Ninguém lê mais Eça de Queiroz aqui. Está se lendo pouco Machado de Assis, nosso principal escritor. Eu faço uma pergunta para você. Você se comunica com outros órgãos do país?
Sempre tem a internet e dá para rolar alguma comunicação. Mas, no geral, sempre ficamos “ilhados” nesse trechinho Rio-São Paulo.
Pois é pouco. Vivemos ilhados.
O discurso de preservação e de sustentabilidade parece,
muitas vezes, apropriado pelo capitalismo. Falo isso porque muito se
fala da natureza, mas não de que essas ações predatórias são políticas e
de quem mais sofre com ela: o povo das florestas.
Sim, é mais sério. Assim como o Brasil desconhece a vida de nossos irmãos da América Latina,
também desconhece o maior manancial de vida que tem o planeta: a
floresta amazônica. Para a integração entre floresta e povo é preciso,
em vez de preservar, salvar a floresta. Senão não há integração. E sem o
povo a floresta é só paisagem. Quem dá vida à floresta – no sentido da
dinâmica da vida dela – é o homem. É o homem que passa a conhecê-la numa
relação mágica: bate no tronco e conhece a resistência da árvore contra
ventanias e temporais; através de experimentações, conhece a lenha;
descobre até remédios. Para todas as doenças que existem no mundo há um
remédio. Nesse momento se estuda a casca de uma árvore chamada
unha-de-gato e o chá de sua casca que pode ser usado para tratamento do
câncer, desde que o diagnóstico tenha sido feito precocemente. Quando os
portugueses chegaram na floresta os índios já tinham a copaíba
[anticicatrizante] e a andiroba [antibiótico], o melhor curativo que
tem. Eu dou o exemplo de Anita, minha gata selvagem de
rua – salvamos a vida dela –, que me arranhou aqui [mostra o braço
direito]. Passei pomada de copaíba e, três dias depois, olha só! [sorri,
mostrando algumas discretas marcas] Mas eu não vou castigar ela, não.
Ela não é educada, coitada.
Não há um risco – ou até um fato, como estamos vendo em
muitos casos – desse discurso de preservação ser apropriado pelo
capitalismo?
Há muito tempo a ação intensa do poder do capitalismo sobre a
floresta é só de cifrão. É um exemplo danoso: abatem a floresta para
extrair suas riquezas. E, com a avanço do capitalismo, muitas áreas das
florestas são escolhidas para se abater e serem transformadas em áreas
agrárias, como acontece hoje na Amazônia com o plantio de soja. No estado do Mato Grosso
há um enorme trabalho de abatimento dessas áreas para a pecuária.
Também temos muitos estrangeiros comprando terrenos na floresta. Vivemos
uma ocupação estrangeira e o Brasil até hoje não tem uma política florestal. Isso a Marina
[Silva, liderança da Rede] diz muito bem. No estado amazônico um
empresário chega ao governo e faz decretos para ampliar seus hectares
[reduzindo as áreas de preservação] e passa a adquirir propriedades. Não
temos uma política florestal rígida. Eu tenho um livro chamado “Amazonas – Pátria da Água”
[Editora Bertrand Brasil, 2002] que trata disso. Eu busquei contribuir
para o conhecimento da floresta com meus livros. São seis ou sete livros
só sobre a vida na floresta: suas lendas, seus mitos, seus milagres,
suas grandezas, suas misérias também. Afirmei com veemência que, dentre
os bilhões de vegetais que ali existem, não chegam a cinco por cento
aqueles cujos princípios químicos ativos foram estudados no Brasil. Os
naturalistas, os biólogos e os cientistas europeus estudaram a floresta.
Nós, infelizmente, não estudamos. Agora, você não quer saber nada de
poesia né?
Já que perguntou, aqui vai uma pergunta poética. O senhor…
quer dizer, você escreveu que a “liberdade é algo vivo e transparente”. A
gente está fazendo bom uso dela ou nesse contexto político estamos
mesmo num “pântano enganoso”?
Nós estamos. Eu estou celebrando a juventude dos meus 90 anos. Só vim
a saber fazer a minha parte, para servir a determinada causa, quando
fui atingido pelo raio da pobreza e da injustiça. Com a formação que eu
tive dos meus pais, comecei a ter uma consciência solidária. Tenho minha
arte que é comprometida com a construção de uma sociedade humana
solidária. Eu fiz essa opção. Eu coloco a minha arte a serviço da
conscientização e acredito que é possível a construção de uma sociedade
humana solidária. Coloca essa frase no final.
Fonte: Revista ihu on-line ( Instituto Humanitas Unisinos ADITAL )
Diretoria do Sinpro
Macaé e Região
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