Talvez o preconceito linguístico mais óbvio seja uma afirmação
corrente sobre a fala de algum grupo (jovem e/ou pouco escolarizado):
eles falam de qualquer jeito (pretendo falar muito desse tema!).
Trata-se de preconceito no sentido etimológico: um “pré-conceito”, ou
seja, um conceito emitido antes da análise dos fatos.
As pessoas
têm, evidentemente, direito a seu gosto (musical, linguístico, culinário
etc.). Assim, é legítimo que cada pessoa tenha sua preferência por
sotaques (gostar mais de ouvir nordestinos do que de ouvir gaúchos ou
mineiros, ou vice-versa) e por construções sintáticas (gostar mais de
construções com cujo do que de construções que o contornam etc.).
Mas
seria bom que ninguém pensasse simplesmente que seu gosto é o “certo”,
porque esta posição, em geral, além de erro técnico, é prova de pouca
cultura. Não é legítimo, do ponto de vista cultural, “falar mal” sem
fundamento, desprezar sem analisar. Dou um exemplo radical, o emprego de
“menas”.
A forma funciona como marca de pouca cultura. Além
disso, foi associada a Lula, que a empregou em campanhas presidenciais. E
foi critério para o julgamento de sua capacidade política. Muita gente
teve ocasião de declarar que se tratava simplesmente de um erro, ou que
“menas não existe”. Acontece que existe e só é erro em sentido não
técnico, social.
A flexão está, por exemplo, registrada no
dicionário Houaiss (que a analisa em termos duros): “no Brasil, na
linguagem coloquial desescolarizada, ocorre a forma deturpada menas
(pron. indef.), em concordância de gênero com o subst. que se segue
(menas confiança comigo, hein?)”.
Destaco a análise gramatical de
Houaiss: menos concorda com o substantivo que a segue. Ou seja: ninguém
diz, por exemplo, *menas dinheiro, *menas meninos, *menas gols. Só se
ouvem expressões como menas maracutaia, menas comida, menas roupa etc.
Em suma, sempre que a forma ocorre, cumpre-se rigorosamente a regra de
concordância nominal.
A ciência, frequentemente, se debruça sobre
casos selecionados. Não trata de tudo, mas de fatos exemplares. Eles
comprovam, de certa forma, que as teses gerais são verdadeiras, ou, pelo
menos, aceitáveis. Menas prova que os incultos também falam segundo
regras rigorosas. A concordância mostra isso.
O caso menas, um dos
mais marcados socialmente, deveria servir para que todos os
preconceitos relativos à fala popular (desescolarizada) fossem
combatidos. Pode-se continuar a não gostar da forma. O que não se pode –
porque indica incapacidade de análise – é dizer que se trata de um
erro. E que ele mostra que se fala de qualquer jeito.
Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas.
Fonte: Carta Capital.
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