Nosso sistema educacional está muito aquém do que poderia,
considerando nossa realidade social, econômica e cultural. Ou seja,
temos condições objetivas de construir um sistema educacional mais
abrangente, de melhor qualidade e muito mais inclusivo. Vamos ver.
Temos condições objetivas para estabelecer um bom sistema educacional
A
grande maioria da população brasileira (87%) habita regiões urbanas e,
portanto, não tem nenhuma dificuldade de acesso às escolas. Não há,
também, mesmo nas menores cidades brasileiras, dificuldades intrínsecas
para fixar professores e outros profissionais de educação necessários
para implantar instituições de educação básica.
Apenas para
ilustrar com uma comparação internacional: dos quase 20 países com
percentuais da população vivendo em regiões urbanas entre 80% e 90%,
apenas dois apresentam taxas de analfabetismo de jovens e de jovens
adultos (de 15 a 24 anos) maiores que as nossas, Arábia Saudita e Gabão
(os dados são da Unesco Institute for Statistics). Nossa taxa de
analfabetismo nessa faixa etária é típica de países nos quais cerca de
40% da população é rural, portanto muito menos urbanizados do que o
nosso.
Evidentemente, não se está argumentando que jovens que vivam em
zonas rurais possam ser analfabetos: o que se está mostrando é que não
temos nenhuma dificuldade em fixar crianças ou jovens no sistema
educacional que possa ser atribuída ao local de moradia das pessoas. Em
resumo, muitos dos nossos jovens analfabetos de 15 a 24 anos moram, ou
moraram, na idade em que poderiam ter sido alfabetizados, ao lado de
escolas.
A renda per capita tampouco é um fator que possa
explicar nosso atraso educacional. Embora ela não seja elevada, mais
investimentos em educação – e, portanto, mais crianças e jovens ocupados
com a frequência escolar e um maior número de pessoas se dedicando à
atividade educacional – não comprometeriam outras atividades essenciais,
diferentemente do que poderia acontecer em países muito pobres.
Novamente, apenas um exemplo: países com renda per capita
aproximadamente igual à brasileira apresentam, em média, taxas de
matrícula no ensino superior cerca de 50% acima das nossas. Ou seja,
apesar das enormes concessões feitas à qualidade, estamos ainda muito
aquém do que poderíamos estar.
Não temos, também, problemas com
grande diversidade linguística, fator que dificulta a escolarização das
crianças e jovens e a formação de professores em alguns países, pois
praticamente a totalidade do país fala a mesma língua. Muitos países
apresentam limitações impostas pelas tradições religiosas. Entre elas
estão a obrigatoriedade de se ensinar conceitos ligados a religiões,
reservar horários para as atividades religiosas, destinar recursos para o
financiamento de instituições de formação religiosa ou mesmo, em casos
extremos, dificultar a frequência escolar de meninas. Nenhuma dessas
limitações está presente no Brasil.
Não tivemos, também, guerras
internas ou externas, o que poderia criar dificuldades educacionais pela
necessidade de se reconstruir a infraestrutura destruída, pela perda
humana que compromete a formação da força de trabalho do país, pelo
número de órfãos provocados pela guerra, etc. Não está tampouco aí a
explicação para nossas dificuldades.
Em resumo, não temos nenhuma
impossibilidade real de construir um sistema educacional democrático,
igualitário e de boa qualidade. Essa afirmação pode ser corroborada
pelos fatos de que muitos países com condições equivalentes às nossas
têm sistemas educacionais muito melhores, e muitos países hoje
considerados como desenvolvidos conseguiram, quando suas realidades
econômicas eram equivalentes às nossas atuais, desenvolver seus sistemas
educacionais de forma muito melhor do que fazemos hoje.
Então, se não há explicações de por que chegamos aonde chegamos, o que fizemos de errado?
Se
tivéssemos cometido apenas alguns poucos erros, provavelmente nossa
situação seria bem melhor do que é. Entretanto, cometemos muitos erros.
A
educação infantil é caracterizada por um baixíssimo atendimento (menos
de 20% das crianças até quatro anos de idade frequenta creches), por um
atendimento grandemente terceirizado e feito de forma não profissional,
com consequências na escolarização e no desenvolvimento futuros das
crianças. Muitos veem as creches não como um espaço educativo, mas como
coisas “importantes para as famílias que precisam trabalhar e não têm
com quem deixar os filhos menores”, como consta do blog de um deputado
federal.
Atendendo a poucas crianças e com práticas e conceitos
totalmente errados, nossa educação começa mal.
Nos períodos de
êxodo rural, fato que ocorreu principalmente nas décadas de 1960 e 1970,
as cidades receberam muito mal seus novos habitantes, com evidências no
setor habitacional, que perduram até hoje e com graves consequências na
escolarização. Nesse período, em especial na década de 1970, houve um
grande aumento da população urbana e, portanto, do número de matrículas
no ensino fundamental, mas sem o correspondente aumento nos recursos
materiais. Assim, a escola pública iniciou um processo de decadência,
coincidindo com o período no qual as escolas privadas passaram a atender
as elites.
Esse período foi marcado por vários discursos que
objetivavam desqualificar o sistema público de ensino e seus
profissionais, fornecendo, assim, as bases (ideológicas?) para seu
sucateamento. Uma sala de aula vazia ou uma escola pública que não era
integralmente utilizada (porque, por exemplo, grande parte da população a
que atendia migrou para outras regiões da cidade, mas ainda havendo
pessoas a serem atendidas na mesma região e, portanto, necessidade da
escola) eram usadas como pretensos exemplos de ociosidade do sistema. O
afastamento de professores por problemas de saúde não era tratado como
um problema de… saúde, mas, sim, segundo até mesmo ocupantes de altos
cargos na área educacional, como sendo uma evidência da postura
irresponsável daqueles profissionais. Esses e outros discursos
equivalentes levaram à criação de uma falsa frase, abundantemente usada
até mesmo por ocupantes de secretarias de educação, de que “dinheiro,
tem; o problema é que é mal utilizado”. Discursos como esses foram
usados como base para fazer com que a população aceitasse o sucateamento
do sistema público de educação básica.
Nosso ensino superior: insuficiente, privatizado e, consequentemente, ruim
Muitos
erros afetam o ensino superior. Um deles é o despreparo dos estudantes
que chegam às suas portas, principalmente daqueles quase 90% oriundos
das escolas públicas, com falhas graves em sua formação básica e que, em
grande parte, enfrentaram e enfrentam dificuldades materiais muito
intensas. Esse fato já seria suficiente para dificultar o
desenvolvimento de um ensino superior de qualidade. Mas outros se
superpõem a eles.
Talvez o problema mais grave seja a privatização
desqualificada e desqualificadora desse nível de ensino. O enorme
aumento da privatização (75% dos estudantes estão matriculados em
instituições privadas) ocorreu, em especial nas últimas décadas, por
meio de instituições mercantis, fortemente comprometidas com suas
planilhas financeiras. O limitadíssimo controle federal e estadual, que
deveria assegurar a qualidade dos cursos, é totalmente insuficiente para
enfrentar o poder dos controladores daquelas instituições. Os cursos
oferecidos por elas e os locais em que se instalam têm como principal
critério, se não único, a viabilidade financeira do empreendimento, não
as necessidades da população, das diferentes regiões do país ou das
várias profissões. Assim, são oferecidos cursos que em nada contribuem
para o país e que levam a um rebaixamento dos critérios de julgamento,
por parte da população, do que seja uma instituição de ensino superior e
uma universidade.
Esses cursos e instituições são favorecidos por
programas de subsídios ou financiamento direto, tanto por parte do
governo federal como de governos estaduais, que têm por objetivo
viabilizar os empreendimentos, e não promover o ensino superior no país.
Evidência de que essa afirmação é verdadeira são os critérios adotados
pelos programas governamentais de subsídio, que ignoram totalmente as
áreas de conhecimento dos cursos oferecidos, a região geográfica onde se
instalam e a qualidade dos cursos. Essa privatização fez com que o
Brasil apresente uma distribuição de estudantes pelas diferentes áreas
de conhecimento em total desacordo com nossas necessidades e com a
prática dos países que levam educação a sério.
Mais recentemente,
em especial após 2005, tivemos um aumento absolutamente irresponsável
dos cursos a distância. Atualmente, temos um número de vagas nessa
modalidade de ensino, e nas mãos de instituições privadas, praticamente
equivalente ao número de formados no ensino médio. Quando o número de
vagas em cursos presenciais, também controladas pelo setor privado, já é
maior do que o número de concluintes do ensino médio e muito maior do
que as realmente ocupadas, algumas perguntas óbvias, e cujas respostas
podem ser assustadoras, são: o que se pretende com isso? Por que os
responsáveis pela educação no país, em especial em nível federal,
permitiram que isso acontecesse?
Avaliem as avaliações
Todo
o nosso sistema educacional é acompanhado de um enorme sistema de
avaliação. Avaliações são coisas úteis, pois permitem acompanhar o
desenvolvimento de várias atividades, localizar problemas e, portanto,
agir. Entretanto, não é para isso que a avaliação está sendo usada no
Brasil. Muitas vezes, um novo sistema de avaliação é apresentado como
alguma coisa (ele mesmo) que terá o poder de corrigir os problemas.
Outro
uso bastante amplo da avaliação é para premiar ou punir professores
segundo o desempenho de seus alunos nas avaliações. Uma comparação entre
dois países, a Finlândia e os Estados Unidos, este último adotando tal
prática de prêmio/punição enquanto o primeiro repudiando-a
veementemente, mostra, com clareza, que o efeito desse tipo de uso das
avaliações é intensamente negativo. Um sistema monitorado por testes,
voltado para os testes e que remunera ou pune professores em função dos
resultados de seus estudantes em testes é ruim até mesmo para se obterem
bons resultados em testes: os estudantes finlandeses se saem melhor em
testes padronizados, aplicados a estudantes de vários países, do que
seus colegas norte-americanos.
Os resultados das avaliações do
sistema educacional deveriam ser considerados como instrumentos de ação,
objetivando localizar e corrigir políticas e práticas. Entretanto, sua
exacerbação e seu uso como instrumento de propaganda governamental em
todos os níveis contribuem para que a educação seja vista como
mercadoria e os resultados das avaliações como uma informação útil para
que cada um possa, dentro de suas possibilidades financeiras, comprar
aquela que, cabendo em seus bolsos, melhor atenda seus interesses.
Evidência disso são frases como esta, “na importante missão de escolher o
melhor para nossos filhos, segue lista das melhores escolas,
considerando o Enem”, pega ao acaso na internet, mas repetida à exaustão
a cada vez que um novo resultado desse exame é divulgado.
Nas
honestas palavras da secretária de educação de um grande município e que
aparecem na sua página eletrônica, “a avaliação do desempenho dos
alunos na esfera municipal permitirá, também, melhorar o desempenho
deles para (sic) as avalições estaduais”. Mas ela está enganada.
Repetindo a comparação entre Finlândia e Estados Unidos, um sistema
educacional sólido, responsável, respeitador de professores e avesso às
avaliações por meio de testes padronizados é melhor até mesmo para se
obterem bons resultados em testes padronizados.
O uso que se faz
das avaliações e de seus resultados reflete como a educação é vista e
entendida pelos responsáveis por sua oferta.
Conclusão
Esses
fatos, que apenas ilustram, mas não esgotam os problemas que
acumulamos, não são exatamente erros, mas, sim, a própria política
educacional implantada no país: um sistema educacional excludente, sem
nenhum compromisso com os ideais igualitários, de baixa qualidade,
insuficiente, muito aquém daquilo que poderíamos ter e que desrespeita
professores e estudantes. Evidentemente, suas consequências são e serão
terríveis: reproduzimos as desigualdades, não formamos os quadros de que
o país tanto precisa, não damos a todos as mesmas oportunidades de se
desenvolverem como pessoas e marginalizamos enormes contingentes
populacionais. É necessário reverter essa situação e, para isso,
precisamos fazer exatamente o inverso do que fizemos até agora.
Otaviano Helene
é professor no Instituto de Física da USP e foi presidente do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Fonte: Correio da Cidadania.
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