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sábado, 30 de junho de 2012

Educação: o que não fazer


Nosso sistema educacional está muito aquém do que poderia, considerando nossa realidade social, econômica e cultural. Ou seja, temos condições objetivas de construir um sistema educacional mais abrangente, de melhor qualidade e muito mais inclusivo. Vamos ver.


Temos condições objetivas para estabelecer um bom sistema educacional

A grande maioria da população brasileira (87%) habita regiões urbanas e, portanto, não tem nenhuma dificuldade de acesso às escolas. Não há, também, mesmo nas menores cidades brasileiras, dificuldades intrínsecas para fixar professores e outros profissionais de educação necessários para implantar instituições de educação básica.

Apenas para ilustrar com uma comparação internacional: dos quase 20 países com percentuais da população vivendo em regiões urbanas entre 80% e 90%, apenas dois apresentam taxas de analfabetismo de jovens e de jovens adultos (de 15 a 24 anos) maiores que as nossas, Arábia Saudita e Gabão (os dados são da Unesco Institute for Statistics). Nossa taxa de analfabetismo nessa faixa etária é típica de países nos quais cerca de 40% da população é rural, portanto muito menos urbanizados do que o nosso. 

Evidentemente, não se está argumentando que jovens que vivam em zonas rurais possam ser analfabetos: o que se está mostrando é que não temos nenhuma dificuldade em fixar crianças ou jovens no sistema educacional que possa ser atribuída ao local de moradia das pessoas. Em resumo, muitos dos nossos jovens analfabetos de 15 a 24 anos moram, ou moraram, na idade em que poderiam ter sido alfabetizados, ao lado de escolas.

A renda per capita tampouco é um fator que possa explicar nosso atraso educacional. Embora ela não seja elevada, mais investimentos em educação – e, portanto, mais crianças e jovens ocupados com a frequência escolar e um maior número de pessoas se dedicando à atividade educacional – não comprometeriam outras atividades essenciais, diferentemente do que poderia acontecer em países muito pobres. Novamente, apenas um exemplo: países com renda per capita aproximadamente igual à brasileira apresentam, em média, taxas de matrícula no ensino superior cerca de 50% acima das nossas. Ou seja, apesar das enormes concessões feitas à qualidade, estamos ainda muito aquém do que poderíamos estar.

Não temos, também, problemas com grande diversidade linguística, fator que dificulta a escolarização das crianças e jovens e a formação de professores em alguns países, pois praticamente a totalidade do país fala a mesma língua. Muitos países apresentam limitações impostas pelas tradições religiosas. Entre elas estão a obrigatoriedade de se ensinar conceitos ligados a religiões, reservar horários para as atividades religiosas, destinar recursos para o financiamento de instituições de formação religiosa ou mesmo, em casos extremos, dificultar a frequência escolar de meninas. Nenhuma dessas limitações está presente no Brasil.

Não tivemos, também, guerras internas ou externas, o que poderia criar dificuldades educacionais pela necessidade de se reconstruir a infraestrutura destruída, pela perda humana que compromete a formação da força de trabalho do país, pelo número de órfãos provocados pela guerra, etc. Não está tampouco aí a explicação para nossas dificuldades.

Em resumo, não temos nenhuma impossibilidade real de construir um sistema educacional democrático, igualitário e de boa qualidade. Essa afirmação pode ser corroborada pelos fatos de que muitos países com condições equivalentes às nossas têm sistemas educacionais muito melhores, e muitos países hoje considerados como desenvolvidos conseguiram, quando suas realidades econômicas eram equivalentes às nossas atuais, desenvolver seus sistemas educacionais de forma muito melhor do que fazemos hoje.


Então, se não há explicações de por que chegamos aonde chegamos, o que fizemos de errado?

Se tivéssemos cometido apenas alguns poucos erros, provavelmente nossa situação seria bem melhor do que é. Entretanto, cometemos muitos erros.

A educação infantil é caracterizada por um baixíssimo atendimento (menos de 20% das crianças até quatro anos de idade frequenta creches), por um atendimento grandemente terceirizado e feito de forma não profissional, com consequências na escolarização e no desenvolvimento futuros das crianças. Muitos veem as creches não como um espaço educativo, mas como coisas “importantes para as famílias que precisam trabalhar e não têm com quem deixar os filhos menores”, como consta do blog de um deputado federal.

Atendendo a poucas crianças e com práticas e conceitos totalmente errados, nossa educação começa mal.
Nos períodos de êxodo rural, fato que ocorreu principalmente nas décadas de 1960 e 1970, as cidades receberam muito mal seus novos habitantes, com evidências no setor habitacional, que perduram até hoje e com graves consequências na escolarização. Nesse período, em especial na década de 1970, houve um grande aumento da população urbana e, portanto, do número de matrículas no ensino fundamental, mas sem o correspondente aumento nos recursos materiais. Assim, a escola pública iniciou um processo de decadência, coincidindo com o período no qual as escolas privadas passaram a atender as elites.

Esse período foi marcado por vários discursos que objetivavam desqualificar o sistema público de ensino e seus profissionais, fornecendo, assim, as bases (ideológicas?) para seu sucateamento. Uma sala de aula vazia ou uma escola pública que não era integralmente utilizada (porque, por exemplo, grande parte da população a que atendia migrou para outras regiões da cidade, mas ainda havendo pessoas a serem atendidas na mesma região e, portanto, necessidade da escola) eram usadas como pretensos exemplos de ociosidade do sistema. O afastamento de professores por problemas de saúde não era tratado como um problema de… saúde, mas, sim, segundo até mesmo ocupantes de altos cargos na área educacional, como sendo uma evidência da postura irresponsável daqueles profissionais. Esses e outros discursos equivalentes levaram à criação de uma falsa frase, abundantemente usada até mesmo por ocupantes de secretarias de educação, de que “dinheiro, tem; o problema é que é mal utilizado”. Discursos como esses foram usados como base para fazer com que a população aceitasse o sucateamento do sistema público de educação básica.


Nosso ensino superior: insuficiente, privatizado e, consequentemente, ruim

Muitos erros afetam o ensino superior. Um deles é o despreparo dos estudantes que chegam às suas portas, principalmente daqueles quase 90% oriundos das escolas públicas, com falhas graves em sua formação básica e que, em grande parte, enfrentaram e enfrentam dificuldades materiais muito intensas. Esse fato já seria suficiente para dificultar o desenvolvimento de um ensino superior de qualidade. Mas outros se superpõem a eles.

Talvez o problema mais grave seja a privatização desqualificada e desqualificadora desse nível de ensino. O enorme aumento da privatização (75% dos estudantes estão matriculados em instituições privadas) ocorreu, em especial nas últimas décadas, por meio de instituições mercantis, fortemente comprometidas com suas planilhas financeiras. O limitadíssimo controle federal e estadual, que deveria assegurar a qualidade dos cursos, é totalmente insuficiente para enfrentar o poder dos controladores daquelas instituições. Os cursos oferecidos por elas e os locais em que se instalam têm como principal critério, se não único, a viabilidade financeira do empreendimento, não as necessidades da população, das diferentes regiões do país ou das várias profissões. Assim, são oferecidos cursos que em nada contribuem para o país e que levam a um rebaixamento dos critérios de julgamento, por parte da população, do que seja uma instituição de ensino superior e uma universidade.

Esses cursos e instituições são favorecidos por programas de subsídios ou financiamento direto, tanto por parte do governo federal como de governos estaduais, que têm por objetivo viabilizar os empreendimentos, e não promover o ensino superior no país. Evidência de que essa afirmação é verdadeira são os critérios adotados pelos programas governamentais de subsídio, que ignoram totalmente as áreas de conhecimento dos cursos oferecidos, a região geográfica onde se instalam e a qualidade dos cursos. Essa privatização fez com que o Brasil apresente uma distribuição de estudantes pelas diferentes áreas de conhecimento em total desacordo com nossas necessidades e com a prática dos países que levam educação a sério.

Mais recentemente, em especial após 2005, tivemos um aumento absolutamente irresponsável dos cursos a distância. Atualmente, temos um número de vagas nessa modalidade de ensino, e nas mãos de instituições privadas, praticamente equivalente ao número de formados no ensino médio. Quando o número de vagas em cursos presenciais, também controladas pelo setor privado, já é maior do que o número de concluintes do ensino médio e muito maior do que as realmente ocupadas, algumas perguntas óbvias, e cujas respostas podem ser assustadoras, são: o que se pretende com isso? Por que os responsáveis pela educação no país, em especial em nível federal, permitiram que isso acontecesse?


Avaliem as avaliações

Todo o nosso sistema educacional é acompanhado de um enorme sistema de avaliação. Avaliações são coisas úteis, pois permitem acompanhar o desenvolvimento de várias atividades, localizar problemas e, portanto, agir. Entretanto, não é para isso que a avaliação está sendo usada no Brasil. Muitas vezes, um novo sistema de avaliação é apresentado como alguma coisa (ele mesmo) que terá o poder de corrigir os problemas.

Outro uso bastante amplo da avaliação é para premiar ou punir professores segundo o desempenho de seus alunos nas avaliações. Uma comparação entre dois países, a Finlândia e os Estados Unidos, este último adotando tal prática de prêmio/punição enquanto o primeiro repudiando-a veementemente, mostra, com clareza, que o efeito desse tipo de uso das avaliações é intensamente negativo. Um sistema monitorado por testes, voltado para os testes e que remunera ou pune professores em função dos resultados de seus estudantes em testes é ruim até mesmo para se obterem bons resultados em testes: os estudantes finlandeses se saem melhor em testes padronizados, aplicados a estudantes de vários países, do que seus colegas norte-americanos.

Os resultados das avaliações do sistema educacional deveriam ser considerados como instrumentos de ação, objetivando localizar e corrigir políticas e práticas. Entretanto, sua exacerbação e seu uso como instrumento de propaganda governamental em todos os níveis contribuem para que a educação seja vista como mercadoria e os resultados das avaliações como uma informação útil para que cada um possa, dentro de suas possibilidades financeiras, comprar aquela que, cabendo em seus bolsos, melhor atenda seus interesses. Evidência disso são frases como esta, “na importante missão de escolher o melhor para nossos filhos, segue lista das melhores escolas, considerando o Enem”, pega ao acaso na internet, mas repetida à exaustão a cada vez que um novo resultado desse exame é divulgado.

Nas honestas palavras da secretária de educação de um grande município e que aparecem na sua página eletrônica, “a avaliação do desempenho dos alunos na esfera municipal permitirá, também, melhorar o desempenho deles para (sic) as avalições estaduais”. Mas ela está enganada. Repetindo a comparação entre Finlândia e Estados Unidos, um sistema educacional sólido, responsável, respeitador de professores e avesso às avaliações por meio de testes padronizados é melhor até mesmo para se obterem bons resultados em testes padronizados.

O uso que se faz das avaliações e de seus resultados reflete como a educação é vista e entendida pelos responsáveis por sua oferta.


Conclusão

Esses fatos, que apenas ilustram, mas não esgotam os problemas que acumulamos, não são exatamente erros, mas, sim, a própria política educacional implantada no país: um sistema educacional excludente, sem nenhum compromisso com os ideais igualitários, de baixa qualidade, insuficiente, muito aquém daquilo que poderíamos ter e que desrespeita professores e estudantes. Evidentemente, suas consequências são e serão terríveis: reproduzimos as desigualdades, não formamos os quadros de que o país tanto precisa, não damos a todos as mesmas oportunidades de se desenvolverem como pessoas e marginalizamos enormes contingentes populacionais. É necessário reverter essa situação e, para isso, precisamos fazer exatamente o inverso do que fizemos até agora.

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP e foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).


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