Especialistas contam por que o índice de qualidade é importante, o que ele conseguiu de fato medir em 2015 e como pode ser um instrumento melhor
A divulgação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) pelo MEC no dia 8 de setembro trouxe à tona novamente o debate sobre a eficiência do indicador como instrumento para medir a qualidade da educação no Brasil. Neste ano, a publicação das médias das escolas e das redes de ensino sem acompanhar dados como o nível socioeconômico, coletados por questionários contextuais da Prova Brasil, afetou o trabalho de jornalistas e especialistas na hora de traduzir o que significam os números de acordo com as várias realidades educacionais do país e para além do ranking.
A Associação dos Jornalistas de Educação (Jeduca) publicou uma nota nesta semana criticando, ainda, o fato de o MEC não ter divulgado os resultados aos profissionais com antecedência, sob embargo, para que pudessem preparar análises mais contextualizadas – o que é prática das divulgações do IBGE há 10 anos. Enquanto isso, pesquisadores das áreas de políticas educacionais e avaliação levantam questões como qual a importância do indicador na história da educação brasileira, suas limitações, o que ele realmente consegue mostrar sobre estudantes e redes e como poderia se tornar mais preciso e justo nesse objetivo.
Para Beatriz Rey, jornalista e doutoranda em ciência política na Universidade de Syracuse (NY), apesar da necessidade de melhorias tanto na forma de divulgação quanto no próprio instrumento, o Ideb cumpre um papel muito importante na avaliação da qualidade ao sintetizar a proficiência em leitura e matemática dos estudantes, medida na Prova Brasil, e a taxa de aprovação. “Por meio dele conseguimos saber que em 2016 o abismo entre as escolas públicas e particulares é menor do que nunca porque a educação privada piorou”, exemplifica. O Ideb do ensino médio nas redes estaduais foi de 3,4, em 2013, para 3,5, em 2015. Como nas particulares o índice caiu de 5,4 para 5,3, o fosso entre escolas públicas e privadas caiu de 59% para 51%. Mesmo assim, nenhuma das redes bateu a meta, que é 4 para as estaduais e 6,3 para privadas.
“Ainda que seja parcial, por não incorporar à métrica os indicadores extraescolares como nível socioeconômico, há maneiras de discutirmos o Ideb sem desconstruí-lo”, propõe Beatriz. Na análise da cientista política, desde que o Brasil universalizou a matrícula no começo da década de 1990 e cada vez mais crianças foram para a escola, a existência de um mecanismo de checagem para saber se o direito a aprendizagem é ou não alcançado se tornou imprescindível. “O discurso de que o Ideb é insuficiente me incomoda, porque precisamos identificar o problema da qualidade na ponta”, afirma.
Para Renan Pieri, professor de economia do Insper e especialista em avaliação de programas e projetos educacionais e do setor público, nesses nove anos de divulgação, o Ideb instituiu um comportamento inédito na história da educação brasileira. “Desde 2007, as pessoas passaram a discutir proficiência no país e a falar de metas que a população inteira pode acompanhar, o que é algo novo e democrático”, analisa.
Segundo Pieri, que também é membro da Comissão de Especialistas da Diretoria de Avaliação da Educação Básica do Inep, o índice precisa passar por revisões, inclusive das próprias metas estipuladas às escolas, mas o Ideb tal como ele é hoje gera debates e tentativas de melhorias por parte dos gestores. “Muitas secretarias ainda não têm corpo de gestão, têm sérias dificuldades, mas já é significativo terem a oportunidade de olhar para seus resultados”, aponta.
Como exemplo do que o Ideb é capaz de medir, Renan cita o fato de o Brasil ter mais dificuldade de lidar com os problemas de ensino-aprendizagem após o 5º ano do ensino fundamental. Segundo o Ideb 2016, no 5º ano, todas as redes aumentaram as médias e bateram as metas, enquanto o 9º ano, nas públicas e privadas, ficou estagnado, distante da meta, e o ensino médio não só ficou longe da meta como viu seu índice cair. “Tem algo acontecendo inclusive nas particulares que pode se relacionar ao comportamento de famílias e gestores zelarem mais pela educação dos alunos durante a infância do que na adolescência, quando a preocupação com o ensino se divide com outros desafios, como mercado de trabalho e exposição a drogas e à criminalidade”, avalia.
Outra hipótese que tem sido estudada por Pieri e que pode ajudar as redes a adotar estratégias para desatar o nó do ensino médio é sobre os estímulos ao aprendizado. “Estudar um ano a mais no Brasil há alguns anos era mais rentável do que é hoje e isso desestimularia os alunos no fim do ensino médio. Portanto, apesar de no país ainda ganhar mais quem estuda mais, esse estímulo do mercado de trabalho não deve ser o foco e pode ser preciso substituí-lo por outros, como conteúdos mais atraentes, linguagem e pedagogia mais modernas”, afirma.
Neste ano, apesar de a divulgação do Ideb por ranking de escolas ser amplamente criticada por pesquisadores, o visual de uma dessas listas chamou a atenção para um feito: das 100 escolas públicas brasileiras com as médias mais altas para o primeiro ciclo do ensino fundamental, 77 são do Ceará. Número este que não é devido somente a fatores educacionais. “O caso do Ceará é mesmo impressionante; existem vários municípios com desempenho acima do esperado e um dos motivos é que nos últimos 10 anos o estado cresceu igual à China e a vida dos mais pobres melhorou”, explica Pieri.
Para o professor do Insper, os resultados da evolução da economia, como otimismo e a necessidade de pessoas mais qualificadas para o trabalho, andam ao lado das escolhas de gestão educacional. “No município de Sobral, por exemplo, existe uma política para evitar que não ocorra abandono escolar, os professores estão empenhados em não perder os alunos, com um trabalho mais próximo dos estudantes”, conta. Segundo ele, no entanto, não é possível simplesmente replicar o que funciona para um estado no âmbito federativo. “Não conseguimos criar programas nacionais, porque é necessário testar soluções conforme o contexto”, afirma.
Na avaliação de Antonio Augusto Batista, coordenador de Pesquisa do Cenpec e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o caso do Ceará deve ser pensado como resultado de uma política de longo prazo, que começou nos anos 1990, com a municipalização do ensino fundamental e da educação infantil.
Um estudo publicado pelo Cenpec em 2013, do qual Batista participou, já destacava que o Ideb das escolas, municípios e Centros Regionais de Desenvolvimento do Ceará (Credes) vinha crescendo desde 2005, com aumento de equidade nos anos iniciais, ou seja, o aprendizado das crianças mais pobres seguia uma tendência de se aproximar ao aprendizado das crianças mais ricas – exceto em Fortaleza, onde o peso do nível socioeconômico e a segregação espacial se mostram maiores.
Batista explica que, independentemente da gestão, o estado se mostrou mobilizado para as causas educacionais desde que os municípios optaram por municipalizar primeiro o ensino fundamental 1 e depois o ensino fundamental 2. “A pesquisa que fizemos mostra que não ocorreu descontinuidade das políticas, apesar de o estado ter passado por governos de diferentes partidos”, aponta. Segundo o pesquisador, o que se mantém é uma política de ganhos por acumulação: “primeiro a municipalização, depois a universalização da matrícula e depois a melhoria de qualidade”.
O professor destaca que, no caso do Ceará, municipalizar o ensino fundamental não significou o abandono do estado como formulador e coordenador de políticas. “O estado assumiu um papel de indutor da melhoria em regime de colaboração com municípios, formulando as políticas em forma de pacto, com as Credes acompanhando os municípios de gestão em gestão, estabelecendo metas de aprendizado, discutindo o plano pedagógico com os gestores municipais”, afirma.
Ele também destaca que no Ceará todos os professores, diretores e prefeitos são cobrados para que todos os alunos, independentemente da origem social, aprendam. “Um dos pontos polêmicos no Ceará é que há uma redução das funções da escola, com grande foco em leitura e matemática no 4º e no 5º anos, quando outras áreas do conhecimento, como estudos sociais, tendem a desaparecer”, pondera.
Segundo Batista, outras políticas polêmicas no estado são a bonificação e a responsabilização. As escolas que atingem melhores pontuações recebem mais recursos financeiros. “Nossa pesquisa mostra que essa característica, no entanto, não acirra uma competição entre as escolas de lá; o prestígio conta mais do que o prêmio”, analisa. Ainda no que diz respeito ao professor, o pesquisador avalia que com o tempo os docentes ganharam mais liberdade para escolher os materiais, antes muito homogêneos. Já em termos de responsabilização, os prefeitos que não atingem as metas deixam de receber recursos, “o que por um lado é positivo porque responsabiliza o gestor, mas por outro lado afeta a ponta, pois quem deixa de receber o recurso é o município”, destaca.
Após a revogação, no início de setembro, do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) pelo novo ministro da educação, Mendonça Filho, a ideia de um indicador de qualidade que vá além da proficiência medida pelo Ideb – e considere fatores como a valorização docente, o planejamento e a gestão – voltou a ser mais uma das demandas do Plano Nacional de Educação sem data para sair do papel. Porém, segundo os especialistas ouvidos pelo Carta Educação, existem possibilidades de melhorar o indicador que já existe.
Apesar de o Ideb mostrar pontos de atenção para redes e escolas, a percepção dos atores escolares ainda é a de que o indicador representa um problema. Em parte, devido ao fato de não existirem muitos recursos para que os professores consigam interpretar os resultados da Prova Brasil. “Isso tem mudado com as devolutivas do Inep, mas as escolas continuam se virando como podem para propor ações pedagógicas com base nas notas e não raro a régua vira o objetivo”, conta Renan Pieri.
Para reverter o cenário, Renan acredita que a informação sobre maneiras de usar a prova pedagogicamente precisa partir também de prefeituras e secretarias. “Para gerar resultados na aprendizagem, não basta só divulgar os dados no site do governo federal”, diz. Outra possibilidade, segundo ele, é estabelecer metas para gestores de como o sistema deve evoluir durante um mandato inteiro ou em dois anos. “Mais indicadores importantes dificultariam essa obsessão que se criou pela nota da prova”, analisa.
Além disso, o pesquisador sugere uma revisão das metas de proficiência. Em 2007, quando o Ideb foi concebido, foram pensadas metas para 2021 baseadas no desempenho dos alunos na Prova Brasil de 2005. “Aquele foi o ano da primeira prova e muitas escolas eram pequenas, o que dava pouca base para calcular metas de longo prazo. Tanto é que na edição seguinte vimos escolas que estavam muito bem irem muito mal e outras que estavam mal darem um salto. Na maior parte dos casos a razão para isso foi azar em um dos anos e não melhoria econômica ou de gestão”, explica. Segundo ele por isso existem escolas que vão bater facilmente a meta nacional (6) e outras que nunca vão alcança-la até 2021.
Para Beatriz Rey, falta clareza sobre o impacto das metas no comportamento das redes que estão muito longe de atingi-las. “Se a meta existe para mudar comportamentos e ações pedagógicas, qual é o comportamento quando temos uma meta não factível?”, questiona. “Talvez seja hora de discutir se o Ideb está cumprindo essa função de influenciar comportamentos e, em um segundo momento, debater como melhorar esse instrumento de qualidade”, propõe.
De acordo com Pieri, a meta pode mesmo cair em desuso se as redes notam que estão muito aquém ou muito além dela. “Nessa caso, poderíamos incorporar uma calibragem periódica das metas, a cada cinco anos por exemplo. O horizonte de 2021, estipulado em 2007, talvez seja muito tempo para a gestão pública”, aponta. “Concordo que o Inep esteja sobrecarregado, mas esse trabalho de revisão poderia ser compartilhado com as universidades, tanto públicas quanto particulares, e validado dentro do Inep”, finaliza.
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