Lançada recentemente pela Boitempo, a obra "Coronavírus: O trabalho de sob o fogo cruzado", de Ricardo Antunes, aborda a destruição dos direitos trabalhistas - Foto: Divulgação/Unicamp
Para o sociólogo, impactos do coronavírus é resultado da "tragédia de um sistema de metabolismo social destrutivo"
Os altos índices de informalidade e ausência de direitos trabalhistas que atingem os trabalhadores em todo o mundo, com destaque para o Brasil, não são resultados da pandemia da covid-19.
Segundo o sociólogo Ricardo Antunes,
as graves consequências do novo coronavírus são resultados da
combinação letal entre a crise estrutural do capitalismo, que destrói
sistematicamente a legislação social protetora do trabalho, e uma crise sociopolítica sem precedentes.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o autor do e-book Coronavírus: O trabalho sob fogo cruzado, lançado recentemente pela Boitempo, define o atual cenário vivido pelo trabalhador brasileiro como “o celeiro da tragédia”.
Além dos 12,8 milhões de desempregados, o país conta com um
contingente massivo da população sem acesso à renda e sobrevivendo sob a
ameaça da fome. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de trabalhadores que ficaram sem remuneração durante a pandemia em maio chegou a 9,7 milhões.
Antunes destaca que quando o coronavírus eclodiu, a informalidade já atingia 40% da classe trabalhadora.
Hoje, com a necessária paralisação das atividades econômicas e sem
apoio do Estado, grande parte deste contingente está desempregado.
“Um trabalhador ou trabalhadora na informalidade, se vai pra casa
fazer isolamento, não recebe. Inclusive a maioria sofreu com o
desemprego imediato. Se vai pra casa, morre de fome. Se vai para a rua,
seu emprego desapareceu. A pandemia do capital mostrou o flagelo, a
virulência, a devastação, que o capitalismo dos nossos dias pratica em
relação à classe trabalhadora”, declara o especialista.
Com o crescimento e inovações do chamado “processo de uberização”
durante a quarentena, que impôs a informalidade para diferentes
categorias, o sociólogo avalia “que os capitais estão usando
laboratórios de experimentação para que, no imediato pós-pandemia, ele
sejam implementados”.
Esse processo só não irá se expandir, segundo Antunes – que também é
professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) –, se houver um
processo de luta, e confrontação da classe trabalhadora.
A paralisação convocada pelos entregadores de aplicativos para a próxima quarta-feira (1º), para o sociólogo, será um grande exemplo dessa resistência.
“Não foi a pandemia que trouxe a tragédia. Ela é o resultado de uma
tragédia de um sistema de metabolismo social destrutivo. Por isso falo
em capitalismo pandêmico e virótico. Estamos vivendo um capitalismo
letal, destrutivo, pandêmico e virótico”, ressalta o sociólogo.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Quais impactos a covid-19 trouxe ao mundo do trabalho e que já são sentidos pela população?
Ricardo Antunes: Os impactos da pandemia do capital,
como eu costumo chamar, são profundos. Embora não tenha sido a pandemia
que causou a tragédia do mundo do trabalho, ela pôs a nu, desvendou,
desnudou, a forma pela qual o capitalismo já vinha desenvolvendo, desde
1973, mais especialmente no século 21, a partir da crise de 2008 e 2009,
uma forma de trabalho pautada pela combinação complexa e nefasta entre
alto índice de digitalização das tecnologias de informação e
comunicação.
Hoje temos os Ipads, smartphones, internet 5g, inteligência
artificial. Porém, esse maquinário informacional digital tem avançado e
se desenvolvido empurrando a classe trabalhadora, ou seja, o trabalho
vivo, para a flexibilização, a terceirização, e mais acentuadamente
nesse período, a informalidade e a intermitência. Todos eles, aspectos
profundamente nefastos.
O que venho trazendo nos meus livros anteriores e também nesse, eu
enfatizo como sendo uma corrosão, um processo de devastação da força de
trabalho em escala global. A pandemia eclode em um momento em que temos
40% de informalidade no Brasil. Naquele momento... fevereiro, comecinho
de março. Cerca de 40 milhões de homens e mulheres na informalidade,
12,9 milhões de trabalhadores e trabalhadoras desempregados, quase 13
milhões. Quase 5 milhões em desalento. Mais uma massa de subutilizados e sub-ocupados.
A pandemia vem e devasta. Só para dar um exemplo. A primeira
recomendação que tivemos como importante é fazer o isolamento das
categorias que não trabalhavam em atividades essenciais como médicos,
enfermeiros, entre outros.
Se o trabalhador ou trabalhadora, e falo sempre os dois gêneros
porque há uma divisão social, de gênero e raça no trabalho, veremos isso
ao longo do livro, desenvolvo essa ideia. O que acontece nesse
processo? Um trabalhador ou trabalhadora na informalidade, se vai pra
casa fazer isolamento, não recebe. Inclusive a maioria sofreu com o
desemprego imediato. Não tem nem a chance de redução da jornada e de salário, que já são negativas, que as empresas grandes fizeram. O informal é imediatamente mandado embora.
Prejudica mais a classe trabalhadora feminina do que a masculina. Mais a classe trabalhadora negra, do que a branca. Mais a trabalhadora negra do que a mulher branca. Mais a trabalhadora indígena em relação à mulher branca. Mais o trabalhador e trabalhadora imigrante do que o trabalhador nativo.
Se ele vai pra casa fazer isolamento, ele morre de fome. Se ele vai
para a rua, seu emprego desapareceu. Hoje, o nível de informal
desempregado aumentou. Algumas pesquisas mostram que diminuiu a
informalidade nesses meses. E é verdade. Porque o informal virou
desempregado. Temos o desempregado que tinha o emprego formal e temos um
crescimento desses 40 milhões de informais, e teremos um percentual
deles, significativo, que é um informal desempregado.
Ou seja, a pandemia do capital mostrou o flagelo, a virulência, a
devastação, que o capitalismo dos nossos dias pratica em relação à
classe trabalhadora. E ele é diferenciado. Prejudica mais a classe
trabalhadora feminina do que a masculina. Mais a classe trabalhadora
negra, do que a branca. Mais a trabalhadora negra do que a mulher
branca. Mais a trabalhadora indígena em relação à mulher branca. Mais o
trabalhador e trabalhadora imigrante do que o trabalhador nativo.
É o celeiro da tragédia, se eu pudesse usar uma síntese provocativa. O
capital virótico oferece o celeiro da tragédia. É isso que estamos
vivendo hoje.
::Solidariedade do MST busca mostrar que o inimigo, além do vírus, é o capitalismo::
Já vinhamos discutindo o processo de uberização. A pandemia trouxe novas modalidades de precarização? Essas "adaptações" vieram para ficar?
Já vinhamos discutindo o processo de uberização. A pandemia trouxe novas modalidades de precarização? Essas "adaptações" vieram para ficar?
Fundamentalmente, o que é a uberização do trabalho? Ainda que a
palavra remeta ao trabalhador da Uber, o conceito é mais amplo. Hoje, em
qualquer país do mundo que se vá, você fala de trabalho uberizado, as
pessoas sabem o que é. A empresa Uber se expandiu, junto com ela a
Amazon, o Cabify, 99, Lift, Ifood, Rappi. Uma infinidade. Algumas
específicas em certos país e outras globais.
O trabalho uberizado é um trabalho que padece de condições de
informalidade, está excluído da legislação social protetora do trabalho,
salvo nos países onde está havendo regulamentação. Como no estado da
Califórnia, nos Estados Unidos. Há avanços da legislação na Espanha, na
França e na Inglaterra, porque os trabalhadores estão se manifestando.
Veja, vamos ter a greve agora no dia primeiro de julho. Eu chamo no meu livro, Privilégio da Servidão,
de "escravos digitais". É assim que os capitais os tratam. Eles
trabalham com jornadas extenuantes, em um ritmo intenso, controlado por
um algoritmo. Sem nenhum direito e ainda, essa é a alquimia mais
nefasta, as empresas os tratam como prestadores de serviços.
O trabalho uberizado é um trabalho que padece de condições de informalidade, está excluído da legislação social protetora do trabalho
Se eu sou um prestador ou uma prestadora de serviço, eu não sou
assalariada. Se não sou assalariado, estou fora da legislação protetora
do trabalho. Eu venho dizendo, e isso eu digo no Coronavírus: o trabalho
sob fogo cruzado, que os capitais estão usando laboratórios de
experimentação para que, no imediado pós-pandemia, ele sejam
implementados.
Você me pergunta: É o novo ou é o mesmo? São os dois. É o monstrengo
do trabalho sem direito, gerando um novo monstrengo que carrega parte do
anterior. O trabalhador e a trabalhadora, quando realizam jornadas
fixas, intensas, ele é assalariado. Enquanto tal, tem que ter direitos.
Não pode ser chamado de prestador de serviços.
Estamos vendo agora a realidade. Se não tem serviço, não tem
trabalho, se não tem trabalho, morre de fome. As empresas estão
crescendo. Basicamente as empresas que entregam alimentos, os motoboys,
estão trabalhando muito, sofrendo os padecimentos de não terem os
direitos do trabalho, estão se acidentando, se contaminando, e não têm
nenhuma legislação protetora do trabalho para eles.
Recentemente, por uma ação importante do Ministério Público do
Trabalho da Região de Campinas, junto com pesquisas e trabalhos feitos
nas universidades, inclusive na Unicamp, houve uma determinação que a
secretaria de saúde de São Paulo acatou, que é a da obrigatoriedade
mínima de dar equipamentos, como álcool e máscaras pros trabalhadores.
Ouvi hoje o depoimento de um trabalhador que as empresas dizem que há
caminhões esparramados com álcool sendo distribuídos. E ele diz: "Eu
não vi nenhum". "Rodei São Paulo inteira e não vi nenhum".
Esse tipo de trabalho uberizado, esse protótipo, é o que está sendo
maquinado. Já há médicos uberizados, advogados uberizados, jornalistas
uberizados, professores uberizados, trabalhadoras dos cuidados
uberizadas. Se precisar de uma trabalhadora doméstica, por exemplo, eu
posso acessar uma plataforma de trabalho doméstico, contratar pra ela
vir trabalhar amanhã 2h por dia. A trabalhadora vai ter uma remuneração,
que se muito, será de um salário mínimo, ao passo que a empresa vai
ganhar por horas de trabalho dela, muito mais.
Esse é o desenho que está sendo concebido pelo capital. E ele só não
vai se expandir e se tornar dominante se houver luta, resistência e
confrontação como está havendo no mundo e no Brasil.
Conseguimos traçar paralelos dos efeitos socioeconômicos
dessa crise, dessas mudanças que estamos passando hoje, com outro
momento da história do trabalho?
Traçar paralelo, conseguimos, mas vou provocar com as palavras. É um
paralelo sem paralelo. A última situação parecida com essa foi a 102
anos atrás, na Gripe Espanhola.
Era outro mundo. Não havia essa globalização, ao contrário. Estava
havendo um redesenho do mundo, os países imperialistas e capitalistas
mais avançados estavam disputando. A Alemanha de um lado, a Inglaterra,
Estados Unidos e Japão estavam redesenhando o mundo. "Chega do controle
do capitalismo inglês ou o norte-americano em expansão".
Mas a Gripe Espanhola pegou um mundo que, primeiro, tinha uma
população muito menor do que a nossa. E o capitalismo não tinha chegado
ao nível de destrutividade que chegou hoje. É um ponto que desenvolvo
muito no e-book que estou lançando.
O sistema de metabolismo anti-social do capital, seu funcionamento
orgânico, significa o seguinte: o capitalismo só pode crescer
destruindo. Um exemplo muito simples: hoje olhamos os celulares, os
automóveis e computadores com uma alta tecnologia, fazem tudo. Agora,
curiosamente, quanto mais tecnologicamente desenvolvido eles são, menos
tempos de uso eles podem ter. Menor é o tempo de duração. Por quê?
É uma questão óbvia. Se uma coisa tem uma grande qualidade, ela deve
durar muito. Se comprar um carro dos anos 60, ele durava 20, 30 anos.
Hoje um automóvel é programado pra durar muito menos. Tem o seguro de
perda total e aí se acha que ganha um carro novo. Na verdade, algumas
peças foram afetadas e como as peças custam caríssimo, jogamos um carro
no lixo inteiro, às vezes com uma peça quebrada, porque é cara.
Essa é a chamada produção destrutiva. Se o capitalismo só pode
crescer destruindo, ele destrói o trabalho em proporção impressionantes.
A OIT [Organização Internacional do Trabalho] disse algumas semanas
atrás que há havia 1,6 bilhão de trabalhadores e trabalhadoras no mundo
na informalidade, que estavam em um vídeo maior de pobreza do que no ano
anterior. É a destruição do trabalho humano.
É o negro pobre. É aquele que a política bate. É a negra trabalhadora pobre que é vilipendiada. No Brasil, todo dia tem uma tragédia nova. Esse é o cenário do mundo que estamos vivendo.
O capitalismo do nosso tempo está devastando a natureza.
O aquecimento global, as geleiras derretem, isso altera os mares.
Altera a reprodução dos vírus. Se muda o ambiente da terra e se tem um
aquecimento, muitos infectologistas apontam que os vírus encontram
situações mais propícias para se expandirem. E os vírus se expandindo,
afetam a população que come comida com agrotóxico, com transgênico,
industrializada, que respira um ar poluído e o quadro é caótico.
Estamos vendo uma espetacular luta mundial do movimento negro, e
veja, é o movimento negro trabalhador e de classe trabalhadora. Não é
uma camada restrita de negros da alta burguesia americana, por mais que
eles também apoiem, porque são negros e sofrem com o racismo.
É o negro pobre. É aquele que a política bate. É a negra trabalhadora
pobre que é vilipendiada. No Brasil, todo dia tem uma tragédia nova.
Esse é o cenário do mundo que estamos vivendo.
Então, não foi a pandemia que trouxe a tragédia. Ela é o resultado de
uma tragédia de um sistema de metabolismo social destrutivo. Por isso
falo em capitalismo pandêmico e virótico. Estamos vivendo um capitalismo
letal, destrutivo, pandêmico e virótico.
É evidente que na medida que o capitalismo oferece uma pandemia, ela nos afunda ainda mais social, econômica e politicamente.
A pandemia potencializa a possibilidade de questionamento do
discurso do empreendedorismo? As pessoas conseguiram notificar as falhas
e a desproteção trabalhistas desse sistema?
Decididamente e no mundo inteiro. Toda a humanidade está se
perguntando, primeiro: "Por que eu sou pobre e morro e os ricos estão em
suas casas, bem guardados? Por que faltam hospitais para os pobres e
têm leitos para os ricos?".
É um mundo em que hospitais viram shoppings e pobres não têm leitos.
Eles estão se perguntando. O uberizado, a trabalhador ou a
trabalhadora, por exemplo. Quando se fica desempregado por dois anos e
consegue um emprego, começa-se viver uma lua de mel com esse novo
emprego. "Agora é bom. Eu que faço meu horário. Estava cansado, vou
começar a trabalhar às 10h, mas vou até meia noite. Não faz mal".
Só que a pandemia desnudou todo isso. Os trabalhadores percebem que
embora o vírus não escolham a classe... Até porque começou com os ricos.
Por que começou no norte mais avançado da Itália ao sair da China?
Porque havia um espaço daquela região, que eu conheço bem porque tenho
sido professor convidado na Universidade Ca' Foscari Venezi, ali tem
núcleos de empresários chineses com verdadeiros polos de investimento.
Então as burguesias transferiram o vírus da China para outros países e as classes médias fazendo turismo. Só que quando o vírus atinge a periferia, o vírus de letalidade é muito maior. A classe trabalhadora empobrecida do campo, da cidade, da agroindustria, dos serviços, se alimenta pior.
O trabalhador pobre não tem seguro saúde digno, depende do Sistema
Único de Saúde (SUS). Ainda que ele seja muito importante, nós sabemos
que ele está sendo destruído há muito tempo. Fundamentalmente no governo
Temer e Bolsonaro a destruição foi completa.
Uma previdência pública destruída
pelo governo Bolsonaro, muito embora já tivesse medidas contra a
previdência pública em governos anteriores, agora veio a tacada final.
Quando o vírus chega na periferia,
ele não ataca um. Ataca centenas. As populações das periferias, não só
das grandes mas também de pequenas e médias cidades, em muitos lugares
não têm hospitais. Quanto tem hospital, não tem leito. Quando tem leito,
não tem respirador. E quando tem respirador e leito, o médico ou a
enfermeira adoeceu.
Tem uma coisa que é muito importante, que é o papel decisivo dos
movimentos sociais, dos sindicatos de classe, dos partidos de esquerda. O
papel decisivo das lutas feminista, negra, da juventude. Todos esses
movimentos, e muitos já estão fazendo, devem denunciar esse sistema.
Veja o caso das comunidades indígenas.
Elas têm plena consciência que o mundo capitalista dos brancos não lhes
traz felicidade mas devastação. E elas dizem: Nós não queremos extração
de minério nas nossas terras. Vai poluir nossos rios,
trazer dores. É o que estamos vendo agora, o abandono dessas
populações. Uma verdadeira política genocida de tal modo que o
coronavírus está se esparramando no meio indígena. Os brancos entraram, a
mineração e os madeireiros, houve transmissão do vírus. Saem os brancos e o vírus devasta.
Temos muitas questões que são imediatas. Uma renda emergencial para
toda a população e não de R$600. Isso é uma piada. Eu até entendo que
para quem está sem nada, R$600 dá pra comprar arroz, feijão, um sabonete
e segurar umas duas ou três semanas. Mas estamos falando em um nível de
sobrevivência indigna e desumana. Uma sobrevivência dotada do mínimo de
humanidade, suporia pelo menos uma renda de três salários mínimos. Para
comer, habitar e ter remédios.
Estamos falando em um nível de sobrevivência indigna e desumana.
Assim como taxação do lucro das grandes empresas, taxação das grandes
fortunas, do capital financeiro. Mas os movimentos sociais, partidos de
esquerda, sindicato de classe, movimentos feministas, negro, indígena,
estamos obrigados a reinventar outro modo de vida. Esse modo de vida
atual é destrutivo.
Nesse momento de falhas de Estado, há um ganho de consciência
da classe trabalhadora? Queria aproveitar para fazer um link com a greve do próximo 1º de julho, dos entregadores de aplicativos. Haverá uma nova forma de mobilização?
A população trabalhadora percebe que está sofrendo. Agora, a consciência de classe não nasce do nada. Há um movimento evangélico
de extrema direita que se utiliza desse momento para desenvolver um
pensamento que aprofunda a alienação e aprofunda a desumanização.
Do tipo: "O coronavírus não existe. Se você tiver Deus, Deus impede o
coronavírus". Aliás, um presidente de um desses grandes grupos
religiosos foi internado, mas tinha muito dinheiro para pagar por um bom
tratamento. Nessa hora Deus não ajudou e ele teve que ir pro hospital.
Se ele fosse tão crente em Deus ele ficaria em casa.
A população trabalhadora percebe que está sofrendo. Agora, a consciência de classe não nasce do nada.
Já Bolsonaro ganhou uma eleição dizendo que era contra o sistema. Não
dizia que ia defender e arrumar, dizia que era contra. Ele que era uma
criação nefasta do sistema dizia que era contra. É um momento propício
para a humanidade refletir. É ai que entra a importância dos movimentos
sociais, dos partidos de esquerda, dos sindicatos, do pensamento
crítico.
É nesse momento que tem que ajudar a população. É muito complexo
nesse meio todo. Ai tem alguém que diz que há um milagre que é a cloroquina e muitos acreditam, por mais que estejam morrendo. Ai vem outro e diz que não adianta ficar parado em casa. É muito confuso.
Nós temos hoje um fenômeno complicadíssimo que é a internet, as
mídias sociais, o Whatsapp. Estamos vendo grandes gangues de Whatsapp
que robotizaram o sistema de modo que uma informação falsa é "bombada" 50 milhões de vezes. É muito importante que possamos debater.
O mundo inteiro está se perguntando: Faz sentido? Não é só o Brasil.
Por que agora estamos no meio dessa tragédia e estamos pagando? A
população percebe que os ricos se salvam e que os pobres morrer. Se você
pegar a tabela e ver quem está morrendo, são os pobres e negros. Quem
está se safando mais? Os ricos.
As pessoas percebem mas debater essas questões é vital.
E em relação a forma de organização? Temos como saber as perspectivas?
O que os uberizados, os trabalhadores que fazem entrega, perceberam é
que o período de lua de mel que falei agora pouco acabou. Agora é a lua
de fel. O fel é uma coisa azeda, áspera. Os trabalhadores percebem:
"Estou trabalhando 10h, 12h 14h por dia entregando comida e ganhando
menos."
Dizem que é o algorítimo. Mas o que é o algorítimo? Um programa que é
feito. O segredo é quem programa. Posso ter um algoritmo mais
humanizado, onde o trabalhador pode trabalhar com mais tranquilidade,
receba mais, não vai ser cobrado pelo tempo de entrega.
Agora, os algorítimos dos capitais é o algorítimo da necroatividade.
Da atividade letal. Sabe por que? Se morre um, tem 10 para o lugar dele.
Tem cem.
E uma coisa que vale para os movimentos sociais, partidos, não
podemos aceitar trabalho informal. Você conhece empresa informal?
Funciona, não funciona. Ganha, não ganha. Temos uma epidemia da
terceirização há décadas no Brasil. A terceirização é um vilipendio.
Temos que reinventar um mundo onde isso não seja mais aceitável.
Os trabalhadores uberizados perceberam que só tem um jeito. Assim
como eles estão conectados por algoritmos com a empresa, podem se
conectar entre eles. Perguntar se houve redução de salário, o porque tal
pessoa foi demitida.
Os algorítimos dos capitais é o algorítimo da necroatividade. Da atividade letal. Sabe por que? Se morre um, tem 10 para o lugar dele. Tem cem.
Eu indico aqui para quem puder assistir o filme do Ken Loach,
um grande cineasta inglês. "Sorry, we missed you". Vai dar para ver
bem. O trabalhador demorou para encontrar "um emprego maravilhoso" onde
ele é o patrão dele próprio. Alguns meses depois, sua família e ele
estão destroçados. Isso é ser o patrão de si mesmo.
E os empreendedores perceberam o mito. Cadê a renda deles, se não tem
consumidor? Se não tem consumidor, não tem renda. Se não tem renda,
eles mão produzem. E aquele dinheiro investido, tudo o que tinham para
fazer o empreendimento? Virou pó. E o governo, que muito deles elegeram?
Não está nem aí. O governo está garantindo para os grandes bancos e
grandes empresas. O resto que se exploda.
Qual o cenário dos próximos anos? Uma convulsão social?
Movimentação dos trabalhadores contra as ofensivas no mundo do trabalho?
O que esperar para a próxima década, principalmente aqui no Brasil?
Se os capitais continuarem seus laboratórios e experimentações para jogar toda a crise pós-pandêmica no ombro das classes trabalhadoras,
naturalmente sim. Lembra-se que até cinco, seis meses atrás, dizia-se
que o Chile era o maior exemplo de neoliberalismo na América Latina?
Se pegasse a imprensa em setembro do ano passado e perguntasse qual país deu certo, diriam: Chile. Entrou em um processo de lutas que só abrandou agora por causa da pandemia.
Mas é evidente que chega uma hora que a panela de pressão não se
sustenta. A questão é: Vamos pensar em recuperar dimensões de dignidade
no trabalho, direitos do trabalho, para todos e todas, renda que permita sair dessa miséria?
Nós temos dois países no Brasil. Existe um Grand Canion que divide os
ricos e as classes trabalhadores. É brutal essa diferença. Não é
aceitável.
Todo mundo sabe que cinco, seis empresários no país, os mais ricos,
que ganham o que produzem 100 milhões de trabalhadores e trabalhadoras.
Então você pode imaginar que tão poucas pessoas ganham o que produzem
100 milhões? Sendo que desses, dezenas de milhões recebem menos que um
salário mínimo por mês? Está tudo errado.
O neoliberalismo se caracterizou por destruir o Estado. A sociedade
do futuro não será uma sociedade do Estado ou não deveria ser. Mas em
uma sociedade que ainda é capitalista, um papel do Estado pressionado
pelas lutas sociais é fundamental.
O que segura esse país é aquilo que conseguimos preservar de público.
Acontece que o neoliberalismo usa o público para garantir os interesses
dos capitais. Exemplo: o que o Guedes faz. Porque ele é a expressão do neoliberalismo
dos mais primitivos. Ele assusta os neoliberais menos primitivos e devo
dizer que neoliberal primitivo ou sofisticado, não sei qual o pior,
porque o sofisticado é mais qualificado na dominação. Ambos são
nefastos.
Mas isso para mostrar que o capitalismo que temos aqui é primitivo. Mesmo Boris Johnson, claramente conservador e primitivo, quando foi pro hospital e quase morreu,
saiu dizendo que devia a vida a dois imigrantes. E ele que vivia
dizendo que ia fechar a Inglaterra pros imigrantes. Claro que muita fala
e pouca concretude.
A mesma coisa o Trump. Ele vai perder a eleição.
E se o Trump perder a eleição, e não estou nem falando que a
alternativa a ele é boa, não é isso. Mas seria o fascismo levando uma
derrota muito importante. E se o fascismo trumpista for derrotado nos
EUA, os fascistas tropicais, do leste europeu e do mundo asiático vão
sofrer.
A vitória do Trump deu muita força pra eles. A derrota do Trump será o
início de um novo ciclo da nossa humanidade. E é imprescindível que
para esse novo ciclo, não adianta imaginar que teremos convulsões
sociais espontâneas. A burguesia e seus governos irão soltar a força
bruta e o exército e vão matar, até eliminar. E não queremos isso.
Queremos mudanças profundas e que no caso brasileiro comece com a mudança imediata do governo. Impeachment do Bolsonaro. Vamos criar alternativas para que se possa ter eleições ou um processo de vivacidade popular.
Eu não tenho a menor dúvida que a hora que, imprevisível por
enquanto, estivermos sem grande risco de contaminação como temos hoje,
vamos ter centenas de milhares nas ruas. A população percebeu, inclusive
muitos que votaram no Bolsonaro, que esse governo que disse: "É um
problema da humanidade viver. Todos morrem mesmo".
Queria ver se morresse alguém da família dele e ele próprio, se ele teria esse pensamento.
Esses são os desafios que nós temos. E o futuro será mais generoso
para humanidade se conseguirmos conscientizar. Está havendo um processo
de auto-organização e autoconsciência da população, que sabe que na
favela o Estado só entra para reprimir.
E quando vai reprimir o narcotráfico mata crianças e pessoas
absolutamente inocentes como tantos que vêm morrendo nas favelas em São
Paulo e no Rio. A população sabe. A auto-organização é também a
auto-consciência. É o embrião de uma sociedade diferente da nossa.
Edição: Rodrigo Chagas
Rádio Brasil de Fato
Lu Sudré
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