Realizado por alunas do curso de Gestão Ambiental da EACH, Projeto Reciclando Ideias utiliza a educação ambiental. para transformar o ensino numa escola pública de Suzano.
O diagnóstico do lixo produzido na escola em apenas um dia – cerca de 80 kg, o que espantou a todos – virou fonte para estudar gráficos e tabelas nas aulas de Matemática. Nas de História, investigar a origem e o destino dos produtos que cercam nosso dia a dia levou à discussão do consumismo e até do abuso da (má) alimentação baseada em fast food e salgadinhos. Nas de Biologia, o enunciado de Lavoisier segundo o qual na natureza nada se cria, nada se perde e tudo se transforma foi aplicado em sessões de customização de roupas e reaproveitamento de embalagens de lanches, garrafas PET e caixas de sapato, que deram origem a porta-trecos e tudo o mais que a imaginação permitisse. Em todas as disciplinas, o entusiasmo de conectar discussões e conceitos dos livros e do quadro-negro à realidade concreta; de colocar a mão na massa; de perceber que não são necessários programas gigantescos ou mirabolantes para proporcionar, na escola pública, o espaço de transformação de que a educação é capaz.
Essa foi a experiência do Projeto Reciclando Ideias, iniciativa de alunas do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, em parceria com a ONG Centro de Estudos e Pesquisas em Políticas Sociais e Qualidade de Vida (Cepps). O projeto foi desenvolvido ao longo deste ano na Escola Estadual Sebastião Pereira Vidal, no bairro Vila Urupês, em Suzano, região leste da Grande São Paulo. “A educação ambiental pode ser a porta de entrada para a transformação do processo educativo de maneira geral”, acredita o professor Eduardo de Lima Caldas, do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH e orientador do Reciclando Ideias. O projeto já ganhou um reconhecimento importante: sua coordenadora, Gabriela Graça Ferreira, que se forma em Gestão Ambiental neste final de ano, foi uma das vencedoras do Programa Bayer Jovens Embaixadores Ambientais 2011.
A escola foi escolhida porque havia contato de integrantes do projeto com o Cepps, que já realizava atividades ali. Outra razão, de acordo com o professor Caldas, é que a região passa por um conflito não-declarado entre o seu perfil anterior de ocupação – pequenas chácaras e propriedades rurais – e a tendência de verticalização e urbanização dominante na Grande São Paulo. “Queríamos compreender como a escola lidava com esse conflito”, explica.
Gabriela Ferreira, formanda em Gestão Ambiental pela EACH e coorde- nadora do Reciclando Ideias: estudo teórico e resultados práticos
“Medinho” da USP – No início do ano, o professor e as alunas Gabriela e Luana Messena dos Santos se reuniram com a direção e a coordenação da escola para apresentar o projeto. A reciclagem de ideias começou a chamar a atenção desde o começo: no lugar de descarregar um pacote pronto e acabado, a equipe da USP deixou claro que suas propostas não eram definitivas, e que sugestões, mudanças e alterações eram bem-vindas e até estimuladas a partir da experiência dos próprios professores. “Num primeiro momento tínhamos um ‘medinho’, porque era um pessoal da USP, e USP sempre dá esse certo medo”, revela a professora Marta Sanches Dino, coordenadora pedagógica do ensino médio da Sebastião Pereira Vidal. As desconfianças iniciais foram quebradas aos poucos.
O tema gerador das atividades, explica Gabriela Ferreira, era a questão do resíduo sólido – sim, o popular e onipresente lixo. A partir dele, foram discutidos aspectos como o ciclo de vida dos produtos, a possibilidade de reciclagem e a compostagem para os resíduos orgânicos. Enquanto a equipe da Universidade trazia a experiência e a metodologia do Programa USP Recicla, os professores da escola recuperavam a memória de outras iniciativas que já haviam sido criadas e abandonadas no passado. À medida que os encontros ocorriam e as atividades eram desenvolvidas, novas ideias e projetos surgiam.
A exibição e discussão do filme A história das coisas – documentário de 20 minutos sobre nossos padrões de consumo e suas conexões com os problemas ambientais – motivou os professores a encontrar, em cada disciplina, formas de trabalhar o tema com os alunos. Foi de onde surgiram as iniciativas citadas na abertura da reportagem, além de várias outras. Os resultados concretos extrapolaram as salas de aula. Na Física, por exemplo, o enfoque escolhido foi o sério problema do descarte de pilhas e baterias, que todos possuímos em profusão em nossas cada vez mais numerosas traquitanas eletrônicas. Consequências: foi instalado um coletor de pilhas no pátio e a escola fechou uma parceria para que uma empresa de reciclagem de eletrônicos da cidade recolha o material. “Além de estudar, os alunos viram o resultado prático”, diz Gabriela.
Sem sombra – As estudantes da USP trabalhavam com os professores e também passaram de turma em turma do ensino médio convidando os alunos a se engajar no projeto. No primeiro semestre, foi formado um grupo de cerca de 20 estudantes, que participaram mais diretamente das atividades. Eles fizeram, por exemplo, a Oficina do Olhar, em que tiveram os olhos vendados e foram reconhecendo a escola a partir do tato e dos outros sentidos. O diagnóstico do lixo e as oficinas de compostagem e minhocultura também estavam no cronograma.
“Eu gosto mais quando as coisas vão para a prática”, diz Natanny Monteiro, de 15 anos, aluna do segundo ano do ensino médio, que testemunha o maior interesse e aprendizado dela e dos colegas nesse tipo de atividade. O grupo se reunia semanalmente fora do horário das aulas, mas o que era debatido e planejado entre equipe, alunos e professores se estendia a todos os cerca de 300 estudantes do ensino médio. “O legal é que a gente sempre combinava junto o que iríamos fazer. Elas nunca chegavam com uma imposição”, conta Bruno Machado, de 16 anos, também do segundo ano.
Uma das atividades que mais empolgaram os alunos foi a expedição ao entorno da escola. Os estudantes do grupo percorreram as ruas e perceberam vários problemas. “As calçadas são muito precárias, ou estão esburacadas e cheias de lixo e entulho. E também quase não tem árvores”, relata Bruno. No segundo semestre, todas as turmas do ensino médio fizeram as expedições, cada uma levada por um professor. Eles constataram que não havia praças, bancos ou sombra para parar e fazer um lanche.
Da rua para a escola, as fotos tiradas foram comparadas com imagens de satélite do bairro e alimentaram as aulas de Geografia. “Os alunos adoraram, porque puderam usar o Google Maps e viram mais sentido para a geografia”, diz Gabriela.
Outro fruto que as expedições devem gerar é a cobrança das responsabilidades do poder público a partir da constatação da falta de arborização, manutenção e serviços no bairro. A escola planeja chamar um vereador de Suzano para percorrer as mesmas ruas e explicar, afinal, onde estão os investimentos do município. Para o professor Eduardo Caldas, é mais uma demonstração de que a educação ambiental faz o meio de campo entre a gestão de políticas públicas e o sistema educacional. “Ela transforma o sistema educacional e de outro lado gera demandas para políticas públicas não compartimentalizadas, mas integradas, chamando saúde, serviços urbanos, meio ambiente etc.”, afirma.
Seis alunos do grupo também participaram de um seminário na EACH, debatendo a questão dos resíduos com docentes e estudantes da USP. “A intervenção deles foi riquíssima, porque discutiram a partir da realidade que reconheceram na expedição ao entorno da escola”, diz o professor Eduardo Caldas. “Uma coisa legal que eles pontuaram é que acharam que a discussão na USP não foi muito diferente da que eles fizeram na escola”, completa Gabriela.
Pertencimento – O projeto gerou ainda frutos como o aproveitamento de parte da boa área externa da escola para o cultivo de uma horta, com plantas como cebolinha, almeirão, espinafre, alface, boldo e beterraba. “Só cuidavam da horta aos finais de semana, aí começamos a vir toda quarta e sexta e ela foi ficando melhor”, conta o aluno Vinícius Mori, 16 anos. Uma espiral de ervas também foi montada, com itens como hortelã, manjericão e orégano. Os produtos colhidos são utilizados na cozinha da própria escola e já temperaram esfirras e tempurás preparados por professoras em sala de aula e durante mutirões do projeto.
Professora de Ciências e Biologia, Aquilina Gusmão utilizou produtos da horta da escola para explicar a fermentação de bactérias. As esfirras recheadas com ricota e espinafre foram degustadas pelos alunos. Os estudantes também puseram a mão na massa para produzir pães. “Estou com a ideia de convidar as mães para tomar café com o pão feito pelos filhos delas aqui na escola”, diz Aquilina. “É preciso valorizar essa sensação do pertencimento, do ‘fui eu que fiz’. Está faltando muito isso”, acredita a professora, que é também mediadora de conflitos na escola.
De pertencimento, o depoimento da aluna Natanny Monteiro dá uma aula, das tantas com que a Sebastião Pereira Vidal pode abastecer o repertório de quem vê a Universidade como sementeira de transformações reais quando se engaja de fato em questões concretas da sociedade. “O papa-pilhas é um exemplo do que o nosso projeto trouxe para a escola”, diz, e cabe enfatizar que Natanny – que já planeja o vestibular para Medicina no final do ano que vem – fez questão do “nosso”. “A escola cresceu junto com a gente também”, ensina.
Alunos “tranqueirinhas” mudam de comportamento
Formalmente, o Reciclando Ideias na Escola Sebastião Pereira Vidal foi encerrado, porque era um projeto de extensão com bolsas de um ano de duração. Entretanto, o que nasceu com ele não será abandonado. O Cepps continua ligado às atividades, assim como o Programa Escola da Família, ligado à Secretaria da Educação do governo do Estado.
A Escola Estadual Sebastião Pereira Vidal: mudanças no ensino incentivadas pelo projeto concebido pela EACH
Outras duas escolas do bairro serão envolvidas a partir de um novo projeto via Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP. “Vamos aproveitar a riqueza da experiência para ter um ganho de escala e implantar um foco maior em cultura”, diz o professor Eduardo Caldas. Uma das ideias é trabalhar justamente sobre o processo de transição do rural para o urbano, realidade vivida na região e que não é diferente dos dilemas enfrentados pelo personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. Por que o Jeca? A Vila Urupês não tem esse nome por acaso: o bairro nasceu em terras que pertenciam à família do escritor.
Na escola onde o projeto se desenvolveu, as coisas não vão parar. A equipe da USP criou vínculos que não serão desfeitos. Além disso, dois alunos da Sebastião Vidal estão agora estagiando no Cepps. Aproveitar melhor o espaço externo do pátio, com projetos de paisagismo, é uma das ideias. “Não tem como parar. Não podemos jogar no lixo as ações iniciadas no Reciclando Ideias. Todas terão continuidade”, garante a coordenadora pedagógica do ensino médio, Marta Sanches Dino. Para a professora, falar de educação ambiental é obrigação da escola, mas é um processo que caminha lentamente. “Eu não achava que teríamos o resultado que tivemos tão rapidamente”, confessa.
Extensão de fato – “A questão do meio ambiente pertence a todas as disciplinas e os professores entenderam isso, procuraram outras fontes e fizeram um grande trabalho transdisciplinar e interdisciplinar. Foi importante para os alunos e para os professores também”, prossegue Marta. O mesmo sentimento é compartilhado pela professora de História, Maria do Socorro. “No início não achei que ia sair muita coisa. Mas brotou a sementinha das ideias a partir do filme, e no final fizemos banners e uma exposição com todo o trabalho dos alunos. Eles se empolgaram e fiquei contente por ter concretizado o que aconteceu. Aprendi muita coisa”, diz.
As mudanças foram percebidas não só na forma de trabalhar os conteúdos pelos professores, mas se refletiram nos alunos. No grupo dos 20 mais próximos da organização, havia três ou quatro “tranqueirinhas”, como define a professora mediadora de conflitos, Aquilina Gusmão. “Houve mudanças em todos os aspectos. Eles melhoraram muito na disciplina, na visão do coletivo, no sentimento de pertencimento. O rendimento deles melhorou e hoje eles prestam mais atenção, fazem as atividades e não têm mais notas ruins”, testemunha Marta Dino. Talentos também foram descobertos: na oficina de customização, uma aluna com deficiência auditiva e de fala mostrou dotes de desenho que os professores não conheciam. A presença de alunos da USP na escola despertou o interesse de estudantes em conhecer melhor a Universidade e em incluir nos seus planos prestar o vestibular da Fuvest.
Para o professor Eduardo de Lima Caldas, da EACH, quando um projeto como esse propõe a discussão do conteúdo programático das disciplinas a partir do cotidiano e do reconhecimento do entorno, surge a percepção de que fazer essas relações não é fácil, porque “o saber foi encaixotado ao longo da vida”. “É legal ver essa riqueza não como resultado de um projeto de pesquisa, mas como resultado de um projeto de extensão que recupera a ideia inicial do que é a extensão, ou seja, a troca de saberes”, considera. “Esse pressuposto realmente acontece, e a Universidade se aproxima da sociedade, que é de onde ela surge e de onde acaba se afastando.” Da escola pública, tão necessitada da atenção dos governos e da sociedade, vem o retorno: “Minha palavra é no sentido de agradecer e parabenizar a equipe do projeto”, diz Marta Dino.
Fonte: Jornal da USP.
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