Helena Singer, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz, explica o que são territórios educativos
Sem muros, uma escola se abre para a comunidade. Em simbiose com os
demais equipamentos da região, com a rede de proteção à infância, com
coletivos artísticos e organizações sociais, os habitantes desse local
se articulam para garantir que a rua seja um espaço de aprendizado para
todas as idades. A ideia de que só “os especialistas” detêm o
conhecimento cai por terra e as pessoas que ali vivem adicionam suas
experiências e saberes na construção de um projeto de desenvolvimento
local que começa, mas não termina, no campo da educação. Para além do
“Se essa rua fosse minha”, uma proposta: E se esse bairro fosse de
todos?
A descrição acima parece um pouco fantasiosa, mas já é realidade em
diversas comunidades do Brasil que resolveram assumir sua vocação
educativa e converteram-se em Territórios Educativos.
Mas o que é um Território Educativo?
Para Helena Singer, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz e
organizadora da Coleção “Territórios Educativos – Experiências em
Diálogo com o Bairro-Escola”, que acaba de ser lançada pela Editora
Moderna, é um lugar que atende a quatro requisitos: possui um projeto
educativo para o território criado pelas pessoas daquele espaço; agrega
escolas que reconhecem seu papel transformador e que entendem a cidade
como espaço de aprendizado; multiplica as oportunidades educativas para
todas as idades; articula diferentes setores – educação, saúde, cultura,
assistência social – em prol do desenvolvimento local e dos indivíduos.
Essa noção é reafirmada por Juarez Melgaço Valadares, docente da
Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), para quem o aumento da carga horária das escolas brasileiras tem
dado ainda mais relevância para a questão do território. “Não dá para
manter esses meninos e meninas na escola por 4, 5, 8 ou 10 horas. Temos
que reforçar a ideia de que a escola tem que explorar os espaços da
cidade, torná-la educadora e abrir novas possibilidades de
aprendizagem.”
Em sua opinião, enquanto local de prática e experiência, o território
contempla uma série de saberes que não podem ser desconsiderados pelos
espaços educativos em nome da tradição do saber escolar-científico.
“Quem conhece a região, domina certos conhecimentos, histórias e
culturas. Se você traz a capoeira para a escola, o folclore, esses
saberes populares, você tem outros agenciamentos e o jovem é poroso a
tudo isso.”
Segundo o professor, a cidade tem espaços que são negados a
determinados grupos sociais e que precisam ser ocupados e transformados.
Essa relação gera conflitos e antagonismos que poderão ser usados para a
transformação de preconceitos e da realidade local. O que funciona para
o espaço público, também pode ajudar a escola.
“A saída para a escola – e não digo que é fácil – é continuar a
educar, no entanto, radicalizando esse conceito: aceitando vivências e
entendendo culturas e processos de sociabilidade. A vivência do
território não se opõe jamais ao saber escolar. São complementares”,
acredita.
Em São Paulo, o Bairro Educador Heliópolis
é um exemplo dessa trajetória, ao congregar, na EMEF Campos Salles, uma
pedagogia democrática e autônoma com uma profunda ligação com a
comunidade e seus movimentos sociais. Foram-se os muros, abriram-se as
portas.
Outros bairros da capital paulista, como Centro, Vila Madalena e
Jardim Ângela – embora tenham realidades distintas – compartilham a
mesma intencionalidade. Pelo Brasil, Salvador, Rio de Janeiro, Recife,
Belo Horizonte, Nova Iguaçu (RJ) e Sorocaba (SP) vêm realizando suas
próprias tentativas de transformar o espaço comum em currículo e já
colhem frutos interessantes.
Apesar dos avanços Brasil afora, há muito por fazer quando se fala em
Territórios Educativos. Do processo de sensibilização das comunidades e
escolas, passando pelos gestores públicos, à incorporação efetiva nas
políticas e programas, esse parece ser um dos grandes desafios para a
formação de cidadãos autônomos e comprometidos com a democracia no
século 21.
Para inspirar bairros, escolas e comunidades, conversamos com Helena Singer sobre o tema. Acompanhe a entrevista:
Que fatores caracterizam um território? E o que o torna educativo?
Helena Singer: Nós identificamos o território como o
conjunto de usos que se fazem de um determinado espaço. Já o que o
caracteriza como educativo são quatro condições básicas: um projeto para
que ele seja educativo, criado pelas pessoas dali em um espaço
participativo de construção. Por exemplo, em Heliópolis, existe o Sol da
Paz que se reúne a cada ano e define quais são as prioridades do
território educador e concilia comunidade e escola.
A segunda condição é que ele tenha escolas que reconhecem seu papel
de transformar um território em educativo. Não é central, mas é
importante ter uma escola que assume essa vocação e se reconhece com o
território, que o vê como campo de pesquisa, currículo, lugar de estudo,
que se envolve com as questões locais e propõe a ajudar na sua
transformação.
Essa postura da escola fortalece os outros dois elementos: que as
oportunidades educativas se multipliquem, com agentes que oferecem
espaços de aprendizados não só para crianças, mas também para adultos,
ao propor processos permanentes de participação.
E o quarto elemento que é a rede de proteção – formada pela educação,
desenvolvimento social, saúde, cultura – que atendem os jovens e se
articulam numa perspectiva integrada, buscando alinhamentos comuns para
atender as pessoas daquele território e não apenas encaminhando de um
serviço pro outro.
Neste sentido, muitas vezes é necessário que haja uma
consonância de políticas públicas capazes de dar conta da complexidade
de um território. Quais políticas públicas podem incentivar o surgimento
e a consolidação de um Território Educativo? Quais sãos os principais
desafios nesse campo?
Helena: São aquelas que se desenham de modo
intersetorial, como políticas da educação que se constroem em parceria
com a cultura, o esporte, o lazer e a comunicação para multiplicar as
oportunidades educativas. Claro que a atuação dos coletivos é essencial,
mas se o Estado tem uma oportunidade de fortalecer esses âmbitos, o
território ganha força. Um bom exemplo são os Pontos de Cultura, que
possuem projetos educativos e ficam ainda mais fortes na perspectiva do
local onde estão inseridos com o Programa Mais Cultura, que prevê a
parceria da escola com o Ponto de Cultura. No campo da proteção, são
exemplares as políticas que articulam o conselho tutelar, o posto de
saúde e a vara da infância de maneira intersetorial e entendem que o
estudante, menino e morador são a mesma pessoa e suas necessidades são
vistas de maneira não fragmentária.
O principal desafio é realizar, na prática, essa integração. Um
exemplo dessa dificuldade sãos os Centros de Educação Unificada (CEUs),
equipamentos que representariam uma política integrada da educação, do
esporte e da cultura, mas que enfrentam inúmeros problemas do ponto de
vista da gestão, justamente porque a lógica dos setores é fragmentada
Por isso, a perspectiva intersetorial deve vir desde o início e pensar o
todo da efetivação de uma política.
E a comunidade nesse processo?
Helena: Ela é a grande protagonista. O Território
Educativo só se consolida se a comunidade estiver com vontade de fazer.
Quando falamos em comunidade, a entendemos no sentido amplo, sem excluir
a escola, os agentes da saúde, da cultura etc.
De que maneira a escola se torna um agente na constituição de um Território Educativo?
Helena: A escola é um agente quando ela toma
conhecimento de quais são as questões sociais e culturais do território e
se pergunta: quem são as crianças e os jovens? Como vivem? Qual é a
cultura da família? Do bairro? Qual é o meu papel como instituição
primária de sistematização do conhecimento na comunidade? Para mim,
esses são os pontos de partida. Ela vai se consolidar como um agente
quando a cultura da escola e seu plano de ensino se constroem a partir
dessas perguntas.
A Cidade Educadora é a somatória de territórios educativos?
Helena: Não. Uma Cidade Educadora possui territórios
educativos, sem dúvida, mas a política urbana como um todo tem que ser
pensada numa perspectiva educadora. Isso se dá quando os grandes marcos
referencias da cidade, como o Plano Diretor Estratégico e o Plano
Municipal de Educação já são concebidos juntos, integrados e em diálogo
para que todas as políticas da cidade se desenhem na perspectiva da
Cidade Educadora.
Para ilustrar, um exemplo absurdo: digamos que numa cidade todos seus
territórios são educativos, mas o transporte público é péssimo e as
pessoas não circulam na cidade. Quer dizer, sem políticas que
privilegiem a pessoa e não o automóvel, que garantam o usufruto da
cidade para todos, não dá para dizer que a cidade é educadora.
Com isso em mente, gostaríamos que você avaliasse a
importância em se falar de Cidade Educadora, Bairro-escola e Territórios
Educativos no país e na cidade que temos hoje. O que esses conceitos
apontam para o nosso futuro?
Helena: A importância disso hoje é expressa em
várias pautas que são consideradas prioritárias no Brasil e no mundo,
como o reconhecimento do indivíduo e a formação de cidadãos autônomos e
comprometidos com a democracia. Está bem claro que a escola sozinha é
incapaz de fazer isso, por isso, acreditamos que há a necessidade de
articular vários setores para garantir os objetivos da educação. Há
também pautas mais atuais, como o enfrentamento dos grandes desafios
ambientais – que nos indicam que é preciso um reposicionamento da
política, mas sobretudo das atitudes das pessoas, da participação no
processo de tomada de decisão e focando-se mais no desenvolvimento
local, que pode garantir uma sustentabilidade maior do que em grandes
visões desenvolvimentistas.
Além disso, também há um forte diálogo com a
questão do direito à cidade, que no contexto urbano vêm ganhando força e
tem forte conexão com a perspectiva dos territórios educativos. Quando
se fala em priorizar pessoas no lugar de automóveis e fábricas, estamos
falando de Territórios Educativos e Cidades Educadoras.
Quais são as referências teóricas e paradigmas que alicerçam essas reflexões?
Helena: Certamente falamos de um novo paradigma, de
superação de uma visão única, iluminista da história, que acredita que a
razão e o progresso levariam necessariamente à melhoria das condições
de vida das pessoas. No entanto, temos percebido, desde a Segunda Guerra
Mundial, que não é por aí. Temos buscado outras ideias, novos
paradigmas que deem mais poder e ênfase para a produção e agentes
locais, territórios e para uma transformação da vida que vem da vida.
Falamos de uma mudança que não acontece só após uma revolução, mas que
começa em cada um, cada política, cada grupo que é capaz de transformar
parte da vida e, com isso, seu mundo. Acho que neste sentido, Boaventura
de Souza Santos e Milton Santos são nomes muito importantes.
E no campo da educação?
Helena: Muitos dos grandes nomes da educação
brasileira já falaram sobre educação e sociedade: Anísio Teixeira, Mário
de Andrade e Paulo Freire são autores que sempre falaram que a educação
sozinha dentro da escola não é a educação que muda o mundo e que a
gente tem que entender as pessoas, seus contextos e a educação como um
conjunto de processos que envolve a pessoa durante todo seu
desenvolvimento. Essa visão integrada está presente na obra de todos
esses autores.
(Porvir/ #Envolverde)
* Fazem parte do Redação na Rua os sites Catraca Livre, Centro de
Referências em Educação Integral, Guia de Empregos, Portal Aprendiz,
Porvir e VilaMundo.
Fonte: Porvir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário