Lisete Arelaro, professora da USP, critica reforma do ensino médio que foi anunciada pelo Governo Temer
Nesta quinta (22), o governo não eleito de Michel Temer (PMDB) editou uma Medida Provisória (MP) reformando o ensino médio brasileiro. Após o anúncio dos conteúdos das mudanças, que apontavam para o fim de disciplinas como sociologia e filosofia, o Ministério da Educação recuou, afirmando ter divulgado o texto errado das propostas.
Para Lisete Arelaro, professora e ex-diretora da Faculdade de Educação da USP e integrante do Observatório do Ensino Médio (rede de pesquisadores focados na questão), o conjunto de medidas tem mais "retrocessos do que avanços".
Ela afirma que parte das ideias presentes na MP é antiga na política educacional brasileira: "Eles sempre foram contra essas disciplinas, é bom que a gente lembre. Essas pessoas defenderam no governo Fernando Henrique Cardoso a retirada de filosofia e sociologia. Não é primeira vez que eles estão fazendo isso. O objetivo exclusivo se chama economia de recursos financeiros. O que eles querem mesmo é português e matemática e 'vamos formar para o mercado de trabalho'".
Ela também destaca o autoritarismo com o qual as medidas foram impostas. "A questão que está presente é, em primeiro lugar, o autoritarismo. Do ponto de vista concreto, a não ser no governo militar, em nenhum outro momento isso ocorreu. Se você pegar a Ditadura Militar, eles faziam isso: baixar uma reforma, uma alteração, por decreto-lei ou medida provisória, que são a mesma coisa", diz.
Confira a entrevista ao Brasil de Fato abaixo:
Brasil de Fato — Como a senhora avalia a chamada reforma do ensino médio?
Lisete Arelaro — A questão que está presente é, em primeiro lugar, o autoritarismo. Do ponto de vista concreto, a não ser no governo militar, em nenhum outro momento isso ocorreu. Se você pegar a Ditadura Militar, eles faziam isso: baixar uma reforma, uma alteração, por decreto-lei ou medida provisória, que são as mesma coisa.
Existe uma discussão articulada e há, realmente, divergências sobre o que fazer com o ensino médio no Brasil. O que vem acontecendo nos últimos cinco anos de forma ininterrupta? A entrada de empresários que resolvem "adotar" uma escola, "promover mudanças", e dizendo que aquele é o caminho para se ter um ensino médio competente. É o que tem feito o Instituto Unibanco com sua experiência lá em Pernambuco.
Tem coisas aqui que a gente vai ter que esperar o quanto realmente será levado a sério. Causa estranheza não só a truculência. É um desrespeito ao Conselho Nacional de Educação, que tem por função exatamente isso. Eles se acham semideuses, como todo ditador. Eles sabem tudo que deve ser feito e ponto final, mas se você pegar quem está lá, eles nunca trabalharam com ensino médio.
É difícil saber para onde querem ir. Não tem nenhuma inovação que a gente possa dizer "olha, isso aqui melhora o ensino médio, estava faltando isso". É uma surpresa negativa em relação a essa medida que esse governo acha que tem legitimidade para fazer. Não ouve os professores, os especialistas, a área científica. Fica muito difícil achar que algum estado vai cumprir com tranquilidade o que eles estão propondo. É mais retrocesso do que avanço.
Qual a ideia geral presente nessa proposta?
O que eles falam? Que é perda de tempo qualquer formação geral. O que nós perdemos nesse projeto foi a ideia de que é um direito do jovem ter uma formação básica comum. Se você deixar cada escola ou sistema escolher o seu, evidentemente, as escolas com mais condições vão fazer de um jeito e o resto, de outro. Portanto, vai se restabelecer o que a gente chama de desigualdades dentre as oportunidade educacionais. Isso não é uma coisa qualquer. Tem outra coisa: ninguém sabe exatamente o que vai ser a Base Nacional Comum Curricular que eles estão falando. Eles vão esperar as eleições [municipais], mas virá em seguida.
E o recuo do governo em relação à questão das disciplinas, como sociologia e educação física?
É bem estranho. Eu acho que eles estavam tentando ver o que ia acontecer, observar qual seria a reação inicial para por ou não. Ainda que eles acreditem nisso, a gente escapou dessa questão. É complicado. Eu conheço eles. Todos são paulistas, trabalharam nos dois governos Fernando Henrique Cardos. Depois, a Marilena Castro — que, hoje, é quem manda de certa forma — foi secretária de Educação na época de Paulo Renato. Nós os conhecemos bem e sabemos o que está acontecendo.
Em 2014, teve um novo projeto que mudava o ensino médio. De certa forma, Marilena convenceu um deputado federal do PT para apresentar o PL. Ela quem coordenava as audiências públicas, convocava as pessoas. Quando você chegava lá o PSDB já estava ocupando todas as cadeiras.
É uma coisa inédita. Eles mesmos divulgaram várias outras coisas. Foi da imprensa deles. É igual a história do bode na sala. Não está escrito nessa [MP], mas eles já tinham divulgado que, como não há mais formação geral e há a ideia de ênfase em cinco áreas, dependendo da área que o estudante escolhesse, ele deveria fazer um curso superior diretamente relacionado com a sua opção. De alguma forma isso não entrou. É um negócio meio maluco. É um retrocesso, nem o Senai pensa assim, pensava isso nos anos 50.
Eles sempre foram contra essas disciplinas, é bom que a gente lembre. Essas pessoas defenderam no governo Fernando Henrique Cardoso a retirada de filosofia e sociologia. Não é primeira vez que eles estão fazendo isso. O objetivo exclusivo se chama economia de recursos financeiros. O que eles querem mesmo é português e matemática e "vamos formar para o mercado de trabalho".
Qual sua opinião em relação a não exigência de licenciatura?
Foi surpreendente, a essa altura do campeonato, a questão dos professores. Eles estão mudando a LDB para dizer que podem trabalhar portadores de curso técnico em área pedagógica. Isso é inédito. Outra coisa são profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino para ministrar conteúdo de áreas afins à sua formação. Isso significa, efetivamente, a autorização para que engenheiros, por exemplo, não precisem mais fazer curso de complementação pedagógica, como ocorre hoje. Contador vai poder dar aula de matemática. Aliás, qualquer um vai poder dar aula de qualquer coisa, desde que o sistema ache ele é um expert.
O inglês passa a ser obrigatório. Eu nem sei, também, se eles poderiam fazer isso. Ainda que a maioria escolhesse inglês, a LDB dizia que poderia ser francês, espanhol ou até alemão. Nós temos algumas poucas escolas, no Sul, que adotaram o alemão. Agora não pode mais. O espanhol pode ser uma segunda língua.
É altamente diretivo, com mais retrocessos do que avanços. Eles autorizam, por exemplo, algo que hoje é exclusivo para a educação de jovens e adultos, que é a organização do ensino em módulos. Para jovens e adultos, a gente defende que haja uma flexibilidade maior, porque, em princípio, são pessoas que não puderam fazer na chamada "época certa". Também diz que pode se utilizar créditos de cursos que se fez à distância. É uma salada para "facilitar" o ensino médio. Fica parecendo muito que eles não têm interesse de ter um ensino médio de qualidade em termos de formação.
E mais, não respeita as diretrizes curriculares nacionais do ensino médio, que ainda estão em vigor e deveriam dirigir a organização de qualquer curso. O grupo que está no MEC é contra a ideia de uma formação básica comum. Eles querem "facilitar", dizendo que há "muitas disciplinas".
Essa proposta aprofunda as diferenças entre públicas e privadas?
Eu não tenho dúvida nenhuma. Nós também temos que discutir o que é a escola privada no Brasil. Tem a escola privada na qual estuda a classe média alta. Lembrando que a classe alta já não estuda no Brasil. Seus filhos estudam nos EUA e na Europa. De outro lado, tem uma grande parte de escolas privadas, os conglomerados de educação. A Kroton-Anhaguera é dona de 800 escolas de ensino médio, entendendo educação como mercadoria. A venda de diplomas vai ser facilitada.
Qual a situação geral do ensino médio no Brasil?
Falta professor em toda a rede. Pega a rede pública de São Paulo: não faz concurso, e, quando faz, os professores efetivos ficam dois meses até receber o seu contra-cheque, e desistem de trabalhar no Estado. É um salário desproporcional em relação àquilo que se trabalha. Não é só um estímulo à desigualdade, mas também à desqualificação.
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