quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

América Latina e as políticas de combate à desigualdade

Documento da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) apresenta o resgate da massa dos excluídos do nosso subcontinente como eixo principal das políticas não apenas distributivas, mas econômicas e sociais no sentido mais amplo. De certo modo, a desigualdade passa a ser vista como uma oportunidade de expansão econômica interna, um horizonte positivo de crescimento, não mais baseado em consumo de luxo de minorias, mas em consumo e inclusão produtiva dos setores mais pobres da população. O artigo é de Ladislau Dowbor.

A CEPAL publicou um documento de primeira importância, “La Hora de la Igualdad”. Apresenta o resgate da massa dos excluídos do nosso subcontinente como eixo principal das políticas não apenas distributivas, mas econômicas e sociais no sentido mais amplo. De certa forma, a nossa principal herança maldita, a desigualdade, passa a ser vista como oportunidade de expansão econômica interna, um horizonte positivo de crescimento, não mais baseado em consumo de luxo de minorias, mas em consumo e inclusão produtiva de quem precisa. É a dimensão latinoamericana do que o Banco Mundial chama de população “sem acesso aos benefícios da globalização”, cerca de 4 bilhões de pessoas no planeta, quase dois terços do total. Numa terminologia mais prosaica, são os pobres.

O denominador comum da transformação desta década é a ampliação do consumo de massa. A visão enfrenta fortes resistências, com todos os preconceitos herdados, mas no conjunto os efeitos multiplicadores estão se verificando, e o processo foi se ampliando com a geração de governantes progressistas eleitos na região. A visão de bom senso é de que o principal desafio, a exclusão econômica e social de mais da metade da população, pode constituir uma oportunidade, um novo horizonte de expansão no mercado interno, favorecendo assim não só os pobres, mas o conjunto do aparelho produtivo. A crescente pressão da base da pirâmide social por melhores condições de vida, articulada com a determinação dos governos de promover as mudanças, gerou um círculo virtuoso em que o econômico, o social e o ambiental encontraram o seu campo comum, e no contexto tão importante de uma governança democrática.

Os avanços sociais sempre foram apresentados como custos, que onerariam os setores produtivos. As políticas foram tradicionalmente baseadas na visão de que a ampliação da competitividade da empresa passa pela redução dos seus custos. Isto tem duas vertentes. Enquanto a redução dos custos pela racionalização do uso dos insumos, redução da pegada ecológica e aproveitamento das novas tecnologias produtivas e organizacionais é essencial, pelo avanço de produtividade que permite, a redução de custos pelo lado da mão de obra reduz o mercado consumidor no seu conjunto, e tende a ter o efeito inverso. Ao reduzir o mercado consumidor, limita a escala de produção, e mantém a economia na chamada “base estreita”, de produzir pouco, para poucos, e com preços elevados, que é a tradição latinoamericana. E poupa as empresas mais atrasadas de investirem na modernização.

A crise financeira mundial deixou as coisas mais claras. A evolução da América Latina frente à crise se caracteriza pelo fato de que no momento da eclosão dos problemas nos Estados Unidos, a região já vinha tomando medidas redistributivas no sentido amplo, ficando assim parcialmente preparada. No pior da crise, intensificou as medidas, o que facilitou a transição. No entanto, o problema principal não é a crise de 2008. Por mais grave que esta seja, o principal é que a América Latina era e continua sendo a região mais desigual do planeta, com problemas estruturais absolutamente obscenos em termos de riqueza ostensiva e perdulária frente à miséria do grosso da população e as correspondentes perdas de produtividade.

Deste ponto de vista, a crise financeira de certa forma representou uma oportunidade, ao tornar mais evidente a necessidade de uma ampla base de consumo popular. Apraoveitarm-se assim as políticas anti-cíclicas características de uma conjuntura determinada, para estabilizar políticas estruturais, visões de Estado. Paradoxalmente, é graças à crise que um conjunto de setores fechados a visões progressistas passou a ver de outra maneira o papel do Estado, as políticas distributivas, as políticas sociais em geral. Com o colapso dos mercados mundiais, foi importante para uma série de setores de atividade mais vinculados à exportação poderem se reconverter para o mercado interno que se expandia apesar da crise. Com o travamento dos créditos dos bancos comerciais, outros setores viram com bons olhos a existência de bancos públicos que não só mantiveram como expandiram as linhas de crédito. Uma visão mais ampla da política econômica se generalizou, abrindo mais espaço para medidas de longo prazo.

O estudo da Cepal sistematiza de maneira muito útil este novo enfoque, apontando seis grandes pilares:

1) Uma política macroeconômica para um desenvolvimento inclusivo: a região pode crescer mais e melhor. Não só é necessário atingir um maior dinamismo econômico, mas também maiores níveis de inclusão e igualdade social, menor exposição aos impactos da volatilidade externa, mais investimento produtivo e mais geração de empregos de qualidade. O papel das políticas macroeconômicas é essencial.

2) Convergência produtiva com igualdade: as economias latino-americanas e caribenhas se caracterizam por uma notória heterogeneidade estrutural que em explica em grande medida a aguda desigualdade social da região. Esta heterogeneidade está dada pelas brechas internas e externas de produtividade. Para ajudar a preencher estas lacunas, a CEPAL propõe transformar a estrutura produtiva a partir de três eixos de políticas: o industrial, com ênfase na inovação; o tecnológico, centrado na criação e difusão de conhecimento; e o apoio às pequenas e médias empresas.

3) Convergência territorial: o território importa sim. As brechas sociais e de produtividade também tem sua expressão especial. Daí a urgência de criar políticas que abordem a heterogeneidade territorial no interior dos países. As transferências intergovernamentais são decisivas na correção das disparidades territoriais, assim como os fundos de coesão territorial.

4) Mais e melhor emprego: o emprego é a chave mestra para resolver a desigualdade. Para superar as lacunas na renda, no acesso à seguridade social e na estabilidade laboral – além do problema da discriminação que afeta mulheres, jovens e minorias étnicas – a CEPAL propõe um caminho centrado, entre outros temas, na construção de um pacto laboral que gere dinamismo econômico e proteja o trabalhador.

5) A superação das brechas sociais: o Estado tem um papel decisivo na reversão da desigualdade, o que implica um aumento sustentado do gasto social, avançar na institucionalidade social e na direção de sistemas de transferências de rendas para melhorar a distribuição em favor dos setores mais vulneráveis.

6) O pacto fiscal como chave no vínculo entre o Estado e a igualdade: é necessário dotar o Estado de maior capacidade para redistribuir recursos e promover a igualdade. Trata-se de um Estado de bem estar e não de um Estado subsidiário, que avance para uma estrutura tributária e um sistema de transferências que privilegie a solidariedade social. Com uma nova equação Estado-mercado-sociedade poderá se alcançar um desenvolvimento com empregos de qualidade, coesão social e sustentabilidade ambiental.

A formulação desta visão na América Latina, que sempre separou, em termos de análise, as políticas econômicas e as políticas sociais, é sumamente importante. Tanto no Brasil como em outros países, as políticas distributivas continuam a ser apresentadas pelas oligarquias como “assistencialismo”, e a fragilidade das políticas de prestação de serviços sociais como efeito natural da ineficiência do Estado. A dinâmica social como vetor de promoção das atividades econômicas no seu conjunto, nestas propostas da Cepal, constitui uma visão de bom senso. O desenvolvimento volta aqui a ser entendido como processo integrado, e a dimensão econômica se articula com as dimensões sociais e ambientais.

As políticas sociais passam assim a ser analisadas não apenas na sua eficiência específica, em termos de melhoria da saúde ou da promoção das pessoas, por exemplo, mas no seu impacto geral para as atividades econômicas. A concepção de que “a produção” geraria riqueza, enquanto o social constituiria gasto, é simplesmente errada. Consolida-se a visão do social como investimento. Segundo o relatório, “os recursos utilizados na gestão social, mais do que gasto, são investimento".

Em outra dimensão, o investimento social, ao tirar as pessoas da miséria, e integrá-las na dinâmica econômica mais ampla, permite ultrapassar gradualmente o eterno dualismo que trava o desenvolvimento da região: bens pobres para pobres, saúde pobre para pobres e assim por diante. É o que o relatório da Cepal chama da “hetorogeneidade estrutural” que precisa ser enfrentada para gerar a “convergência produtiva”.

"As transferências destinadas à exclusão social e ao desemprego, à habitação, à família e às crianças aumentam a eficácia macroeconômica na medida em que favorecem a participação da mulher, a inserção produtiva das pessoas excluídas e também o consumo provado. Isso coincide com uma das principais mensagens que esse trabalho quer transmitir, a saber, a necessidade de visualizar o gasto social em favor do bem estar a partir de uma perspectiva de investimento social que contribua para reduzir a heterogeneidade estrutural e avançar na direção de uma convergência produtiva" (243)

Neste subcontinente historicamente assolado por oligarquias retrógradas sustentadas por interesses transnacionais, onde sempre se promoveu o desenvolvimento excludente, onde a própria modernidade se apresenta como acesso de minorias a um luxo ostensivo, trata-se realmente de uma virada histórica. Não pelos resultados, que ainda são extremamente tímidos, dada a produndidade da desigualdade herdada, mas pela reorientação das políticas.

Bernardo Kliksberg, que prefacia a obra, também vê as novas políticas na sua dimensão transformadora mais ampla, envolvendo a própria ética dos processos econômicos. "Na América Latina, há hoje uma sede de ética. vastos setores concordam com a necessidade de superar a separação entre ética e economia que caracterizou as últimas décadas. Uma economia orientada pela ética não aparece como um simples sonho, mas sim como uma exigência histórica para superar o paradoxo da pobreza em meio à riqueza e construir um desenvolvimento pujante, sustentável e equitativo".

O documento da Cepal pode ser acessado na íntegra, sem custos, no link http://bit.ly/9Vpwt4 . Uma versão resumido em portugués, de 58 páginas, pode ser acessada em http://bit.ly/bqwYAh


Fonte: Carta Maior



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Mudanças no Capitalismo Global

O aparecimento de dois novos elementos reestruturadores do capitalismo na passagem do século XX para o XXI torna ainda mais complexo o entendimento acerca do seu funcionamento. Em primeiro lugar, o movimento de reestruturação do capital global decorre do colapso na liderança dos dois blocos de países que até pouco tempo atrás organizavam o mundo, a partir do final da Segunda Grande Guerra, quando os Estados Unidos assumiram, de fato, a posição de centro hegemônico capitalista. Inicialmente, já na Grande Depressão de 1873 a 1896, houve concomitantemente um avanço da segunda Revolução Tecnológica, a consolidação do ciclo de industrialização retardatária em alguns poucos países, como EUA e Alemanha. Em especial essas duas nações insistiram, por cerca de meio século, na disputa da sucessão hegemônica do antigo centro dinâmico mundial liderado pela Inglaterra desde o século XVIII. A efetivação de duas Guerras Mundiais, intermediada pela Depressão de 1929, propiciou condições mais favoráveis para o protagonismo dos Estados Unidos, que desde o início do século XX se pronunciavam como a maior economia do mundo.

Mas toda essa centralização dinâmica mundial na economia estadunidense, sobretudo a partir do segundo pós-guerra, foi tensionada pela existência da Guerra Fria (1947 – 1991). Depois da bem sucedida Revolução Russa, em 1917, e com a vitória do exército vermelho sobre as forças do nazi-fascismo, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) se constituiu como centro organizador do bloco de países com economia centralmente planejada. No contexto da Guerra Fria, as duas nações líderes trataram de favorecer a integração do conjunto de países- satélite por intermédio da promoção da produção e comércio externo – ainda que desigual e combinada conforme destacada pela perspectiva teórica do sistema centro-periferia.

Algumas economias nacionais nas regiões latino-americana (Argentina, Brasil e México), africana (África do Sul) e asiática (Coreia do Sul, Taiwan e Singapura) vinculadas ao bloco de países capitalistas, bem como aquelas pertencentes ao conjunto das nações de economia centralizadas (China, Polônia e Bulgária), conseguiram avançar – em maior ou menor medida – na direção da internalização do ciclo de industrialização tardia da segunda metade no século XX. Estes países foram os que conseguiram transpassar a condição de periferia, sem chegar, todavia, ao centro do capitalismo mundial. A semi-periferia seria o encaminhamento possível no quadro teórico do sistema centro-periferia, posto que não possuíam plenamente uma moeda de curso internacional, um sistema nacional de produção e difusão tecnológica e um sistema de defesa nacional relevante.

Com o colapso no bloco de economias organizadas pelo planejamento central durante a passagem da década de 1980 para a de 1990, a fragmentação da antiga URSS foi acompanhada pela transição quase imediata à condição de nação capitalista periférica. Ao mesmo tempo, o fim da fase da Guerra Fria nas relações internacionais foi sucedido pela supremacia praticamente imperial dos EUA, pelo menos até 2008, quando a irrupção da crise do capitalismo global impôs o reinício de uma ampla reformulação na dinâmica de integração do conjunto dos países-satélite. Nesse sentido, a crise global estabeleceu o aparecimento forçado de um segundo elemento reestruturador do funcionamento do sistema centro-periferia capitalista. Além dos sinais crescentes de decadência relativa dos EUA, constatam-se também indícios do deslocamento do antigo centro dinâmico capitalista unipolar para a multipolarização geoeconômica mundial (Estados Unidos, União Europeia, Rússia, Índia, China e Brasil). Tudo ainda em fase embrionária, mas já favorecendo a gradual constituição de um novo policentrismo na dinâmica global capitalista em novas bases. Se considerado ainda o curso do processamento de uma revolução tecnológica tem-se os elementos fundadores de mais uma transformação profunda no modo de produção capitalista.

E, em segundo lugar, destaca-se o intenso processo de hipermonopolização do capital, expresso pelo poder inequívoco de não mais de 500 grandes corporações transnacionais a dominar qualquer setor de atividade econômica e responder por cerca da metade do PIB global. O comércio internacional deixa de ocorrer entre nações para assumir cada vez mais a centralidade entre as grandes corporações transnacionais. Nesses termos, não são mais os países que detêm as empresas, mas as grandes corporações transnacionais é que detêm os países, tendo em vista que o valor agregado gerado nelas tende a ser superior ao PIB da maior parte das nações. Essas corporações não podem mais sequer quebrar, sob o risco de colocar em colapso o sistema capitalista, o que exige, por sua vez, a subordinação crescente dos Estados nacionais às suas vontades e necessidades. Sem a regulação pública global, em meio ao esvaziamento das antigas agências multilaterais do sistema das Nações Unidas, o poder privado torna-se praticamente absoluto na determinação da produção e nível de preços, sendo insuficiente a perspectiva teórica de procurar compreender a dinâmica da Divisão Internacional do Trabalho somente pela lógica do comportamento das nações.

É nesse novo contexto mundial de mudanças estruturais na dinâmica de funcionamento do capitalismo contemporâneo que a professora Maria Conceição Tavares, mais uma vez de forma corajosa e original, persegue o seu inabalável compromisso com a verdade, questionando os limites do sistema centro-periferia para dar conta de uma realidade distinta da do passado. Não obstante o seu reconhecimento implícito acerca da importância teórica deste sistema, manifesta dúvidas a respeito de suas possibilidades para permitir a compreensão do capitalismo dos dias de hoje e o de amanhã. Sem o entendimento a esse respeito, qualquer crítica teórica, ainda que necessária e fundamental na perspectiva de fazer avançar o conhecimento e o debate plural e democrático, pode correr o risco da superficialidade, senão o da injustiça. Nesse sentido, só o tempo pode ser o senhor da razão.


Marcio Pochmann é colunista da Revista Fórum outro mundo em debate.
Este artigo é parte integrante da edição 93 da revista Fórum.

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