A defesa de 10% do PIB para a educação pública é hoje uma bandeira
hasteada por muitos militantes e entidades comprometidas com uma
educação democrática, igualitária e republicana, que garanta a todos
plenos direitos de cidadania e, ao país, a formação da força de trabalho
de que precisa. Mas, de onde saiu esse valor, 10%? Será que precisamos,
realmente, disso para construir uma educação como a descrita acima?
Como dez por cento pode parecer cabalístico ou apenas um valor
“redondo”, adequado para fazer campanhas públicas, é bom rever sua
origem que, de fato, é técnica, baseada em estimativas rigorosas e
correspondendo a um valor tipicamente encontrado nos países que
superaram seus atrasos educacionais.
Proposta da sociedade brasileira para um Plano Nacional de Educação: berço dos 10% do PIB
Após
o fim do período ditatorial, muitas entidades representativas da
sociedade civil (sociedades científicas, sindicatos, associações
estudantis e de trabalhadores da educação, associações de dirigentes da
educação pública, órgão ligados a confissões religiosas, entidades
representativas de movimentos sociais organizados, entre várias outras)
passaram a se articular, em um fórum nacional, na defesa da educação
pública. Essa articulação permitiu a criação de espaços de estudo e
discussão, viabilizou a realização de campanhas públicas e levou à
elaboração de projetos educacionais (1). Um desses projetos foi o Plano
Nacional de Educação, preparado pela comissão organizadora de II
Congresso Nacional de Educação, realizado em 1997, conhecido a partir de
então como o PNE – Proposta da Sociedade Brasileira (PNE-PSB).
Essa
proposta de PNE foi apresentada como projeto de lei ao Congresso
Nacional em 1998 e a ele foi, logo a seguir, apensado o projeto
apresentado pelo executivo federal (2). O PNE-PSB continha detalhes das
necessidades de financiamento, o que inexistia no projeto governamental,
inclusive mostrando a necessidade de recursos crescente ao longo de
alguns anos e atingindo cerca de 10% do PIB ao final de sua vigência.
Não
cabe aqui descrever detalhadamente os cálculos feitos naquele PNE-PSB
(3), mas apenas um breve resumo da metodologia adotada. Isso será
suficiente para mostrar as bases que levaram à estimativa dos 10% do
PIB. Na época, final da década de 1990, tínhamos um determinado padrão
quantitativo e qualitativo de atendimento da população nos diferentes
níveis e modalidades educacionais. O objetivo era atingir, em dez anos,
um novo patamar condizente com as necessidades e possibilidades do país.
A tabela apresenta de forma bastante resumida algumas das metas que se
esperava atingir após o período de dez anos.
(Além delas, que
servem apenas como exemplos, havia metas para a educação especial, para a
educação de jovens e adultos e para a pós-graduação, objetivos a serem
respeitados e atingidos no que diz respeito aos povos indígenas,
detalhamentos de como as metas deveriam respeitar as diferenças
regionais do país, como se daria a autonomia escolar, metas relativas ao
analfabetismo e à formação de professores, entre várias outras).
Evidentemente,
as metas estavam acopladas umas às outras, afinal, como expandir o
ensino médio, por exemplo, sem formarmos professores para tal? Ou como
universalizar o acesso a ele sem superarmos o problema da evasão no
ensino fundamental? Ou, ainda, como expandirmos o ensino de graduação
sem ampliarmos a pós-graduação? Assim, foi necessário um trabalho de
sistematização para estabelecer a consistência entre as velocidades de
atingimento das várias metas.
Resolvida essa parte do problema,
restava estimar os custos. Isso foi feito usando-se vários referenciais,
entre eles, a realidade orçamentária na época e os investimentos médios
por estudante nos vários países, esses últimos medidos não em dólares
ou outra moeda qualquer, mas, sim, em relação à renda per capita
nacional. Afinal, a renda per capita reflete tanto os custos das várias
atividades como as possibilidades econômicas reais de cada país. Os
investimentos anuais médios por pessoa na educação infantil e nos
ensinos médio e fundamental foram estimados então em 25% a 30% da renda
per capita e, no superior, em 60%. Bastava, portanto, combinar esses
percentuais com o número de crianças e jovens a serem atendidos pelo
setor público e chegaríamos a uma boa estimativa dos investimentos
necessários para viabilizar a educação de que precisamos. O resultado
mostrou que precisaríamos de recursos crescentes, que chegariam a cerca
de 10% do PIB.
Outra
forma que nos leva ao mesmo resultado seria estimar os recursos
necessários para: zerar a diferença entre o salário de professores da
educação básica do setor público e o dos demais profissionais com nível
superior (esse aumento da remuneração permitiria tanto melhorar a
qualidade de vida dos profissionais como reduzir a carga horária de
trabalho, exigindo, portanto, um maior número de professores para
atender ao mesmo número de jovens e crianças); aumentar o número de
professores para incorporar aqueles que se evadem (ou são expulsos, é
melhor dizer) do sistema educacional; aumentar as taxas de atendimento
nos ensinos médio e superior; alfabetizar os enormes contingentes
populacionais que temos; aumentar o número de horas de permanência dos
estudantes nas escolas; fazer investimentos de capital para incorporar
mais pessoas no sistema educacional (construir e reformar escolas, e
equipá-las com bibliotecas, laboratórios e outros recursos para uma
escola de qualidade). Se optarmos por essa maneira de fazer as contas,
incluindo a necessidade de educação de jovens e adultos, da educação
especial e de todos os outros aspectos, chegaremos, por outro caminho, à
mesma estimativa de 10% do PIB.
O quê vai ficar de fora?
A
previsão do PNE-PSB era passarmos de um gasto abaixo dos 4 % do PIB
estimado àquela época para perto dos 7% já no início do Plano, crescendo
anualmente até cerca de 10% do PIB em dez anos. Embora a projeção fosse
para um período de dez anos, após superarmos os aspectos mais graves do
nosso atraso escolar e que exigem gastos transitórios (analfabetismo
adulto, falta de professores e altas taxas de repetência, por exemplo),
poderíamos, depois daquele prazo, reduzir os investimentos.
Mas,
infelizmente, o Congresso Nacional acabou por aprovar um PNE que, embora
incluísse várias das metas e propósitos do PNE-PSB, reduziu a previsão
de investimentos a apenas 7 % do PIB e mesmo esse valor foi vetado pela
presidência da Republica. Assim, chegamos a uma situação que lembra a
esquizofrenia, com duas realidades opostas e incompatíveis: havia metas a
serem cumpridas, mas não os necessários recursos para tal. Esse é,
evidentemente, um problema sem solução. A consequência, obviamente, é
que as metas simplesmente não seriam cumpridas, como de fato não o
foram. Em relação a algumas delas, até mesmo nos afastamos ainda mais do
planejado, como são os casos das taxas de conclusão dos ensinos
fundamental e médio.
O veto aos parcos 7% do PIB e suas
consequências não podem ser esquecidos. Sem recursos suficientes jamais
construiremos um sistema educacional que dignifique o país e as pessoas.
Os 10% estimados não foram “tirados da cartola”; foram o resultado de
cálculos com base em dados da realidade. Além disso, esse valor está bem
de acordo com o que foi, ou é, aplicado nos diversos países que
superaram ou estão superando os atrasos educacionais. Portanto, como
corolário desses fatos, menos do que isso é insuficiente para superar
nossos problemas.
Por não termos aplicado os necessários 10% do
PIB (atualmente, os investimentos estão na casa dos 5% do PIB), não
cumprimos as metas e deixamos de fora, excluídos do sistema educacional,
enormes contingentes de jovens e crianças. E os números são
fantasticamente altos: por exemplo, perto de um milhão de pessoas
abandona o sistema escolar antes do final do ensino fundamental a cada
ano; por causa da falta de recursos, dez milhões de pessoas deixaram de
concluir o ensino fundamental durante a vigência do PNE. Grande parte
dos que não são expulsos do sistema educacional freqüenta escolas
desmotivadoras, tem professores (quando têm, pois há aulas vagas em
profusão neste país) sobrecarregados e sem condições de dar a devida
atenção aos estudantes e, consequentemente, deixa a escola com enormes
deficiências. Se as metas do PNE anterior, esgotado no início de 2011,
tivessem sido cumpridas, nossas realidades sociais, econômicas e
culturais seriam bem diferentes das atuais.
Como será o próximo
PNE, ora em (atrasadíssima) discussão no Congresso Nacional? Se
continuarmos a restringir os recursos, devemos deixar explícito o que e
quem vamos “deixar de fora”. Vamos continuar remunerando muito mal os
educadores? Vamos continuar tolerando a evasão escolar nas taxas atuais?
Vamos
continuar com graves deficiências na formação de quadros profissionais
para o país? Vamos continuar usando o sistema educacional como um fator
de marginalização das pessoas e de concentração de renda? Vamos
continuar tendo inúmeras escolas precaríssimas? Vamos continuar
sonegando a muitos o direito de plena cidadania? Ou vamos fazer um pouco
(ou muito) de cada uma dessas coisas?
De onde sairão os recursos?
Uma
pergunta frequentemente feita por aqueles que não apostam em uma
educação democrática é: “de onde sairão os recursos”? Uma resposta óbvia
para isso é “do mesmo lugar que saíram os recursos dos países que
superaram seus atrasos educacionais”: impostos e contribuições sociais.
Mas quem faz aquela pergunta é, normalmente, aquele mesmo que repete o
falso discurso que o Estado, no Brasil, é superdimensionado e suga
recursos da sociedade, uma afirmação de quem desconhece, porque quer
desconhecer, a realidade orçamentária de outros países e, por interesse
próprio ou apenas por repetir o que ouve, acaba por defender uma
política de Estado mínimo – mínimo esse abaixo daquele que é praticado
até mesmo nos países mais liberais. Entretanto, como aquela pergunta é
recorrente, assim como é recorrente a falsa afirmação de que há recursos
públicos e o que falta é uma boa gestão, é necessário responder, o que
será feito em um próximo artigo.
Notas
1)
Uma revisão histórica dessa articulação (e das lutas a que ela deu
origem e força) pode ser encontrada no artigo Revendo o Plano Nacional
de Educação: proposta da sociedade brasileira, Educação e Sociedade,
vol. 31, no. 112, 2010, de autoria de Maria da Graça Nóbrega Bollman.
2)
O artigo PNE: Plano Nacional de Educação ou Carta de Intenção?,
Educação e Sociedade, vol. 23, no. 80, 2002, de Ivan Valente e Roberto
Romano, relata as várias etapas pela qual passaram as duas propostas de
Plano Nacional de Educação.
3) O PNE da sociedade
brasileira pode ser encontrado em vários sítios da internet, como, por
exemplo, http://www.adusp.org.br/files/PNE/pnebra.pdf (consultada em
abril/2012). Nele, aparecem o diagnóstico da realidade educacional de
então, as metas a serem atingidas e os recursos necessários para tal.
Otaviano Helene,
professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Fonte: Correio da Cidadania.
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