sexta-feira, 15 de junho de 2012

Para além da disputa entre escolas e famílias


Com décadas de atraso, chega ao Brasil o movimento pelo direito das famílias de educar seus filhos em casa. Grupos criam organizações, já existe uma associação nacional que será recebida pelo Ministro da Educação, um projeto de lei tramita no Congresso desde fevereiro, uma frente parlamentar foi criada no mês passado, a imprensa começa a noticiar alguns números – seriam cerca de mil famílias educando os filhos em casa no país, segundo a Folha de S.Paulo. Como a prática ainda é ilegal, os números não podem ser considerados dados definitivos.

No mundo, este movimento não é novo. Sites noticiam que nos Estados Unidos já são cerca de dois milhões de crianças e adolescentes (4% da população nesta faixa etária) sendo educados em casa; no Reino Unido, estes números estão na casa das centenas de milhares. A prática já é oficializada também em Portugal, França, Itália, Espanha, Noruega, Finlândia, Canadá, México, Rússia, Coréia, Austrália, Nova Zelândia, Tailândia e África do Sul. Em outros países, a legalização está em debate, como Suécia, Alemanha, Israel e Japão. Nesse último, pode-se dizer que o movimento começou pelas crianças, ainda nos anos 90, com alguns milhares delas se recusando a ir para a escola.

Nos lugares de maior pobreza, a escola adquire importância maior, por ser um dos poucos, senão o único serviço público disponível.

No movimento pela educação domiciliar, unem-se “tribos” tão diversas quanto evangélicos, negros, anarquistas, hippies ou empresários. Todos compartilham da ideia de que é prerrogativa das famílias educar seus filhos, transmitindo seus valores e garantindo a sua integração social.

As novas tecnologias fortalecem o movimento na medida em que disponibilizam às famílias todos os recursos necessários para a empreitada. Já o fracasso da instituição escolar para garantir o aprendizado das habilidades básicas e para criar um ambiente saudável e seguro – fracasso atestado pelas múltiplas provas dos governos e estampado cotidianamente na mídia – oferece a justificativa necessária.

Também na história da educação, a proposta não é novidade. No tratado de Rousseau sobre educação, Emílio é educado por tutores. Nos anos 70, ganhou visibilidade mundial a proposta do filósofo austríaco radicado no México Ivan Illich por uma sociedade sem escolas com o livro Deschooling Society. Naquela mesma década, o americano John Holt cunhou o termo unschooling. Em português, talvez ambos possam ser traduzidos por desescolarizar, embora já se discuta a diferença entre os termos e as propostas decorrentes.

Mas, se a ideia é antiga, disseminada e bem respaldada, por que demorou tanto a chegar ao Brasil e ainda hoje é motivo de polêmica? Porque aqui o movimento social pela educação esteve concentrado nas últimas décadas em garantir o direito à escola a toda população. Ainda hoje, com imensas desigualdades sociais, ir à escola é um privilégio.

Para dar conta de uma distorção histórica, até os anos 90, os esforços concentraram-se no ensino fundamental, que foi inclusive ampliado de oito para nove anos, e resultados foram alcançados: dados do PNAD/IBGE de 2009 indicam que 95,3% das pessoas de 6 a 14 anos estão matriculadas neste nível de ensino. A meta passou a ser, então, a população de 4 a 17 anos, faixa na qual a desigualdade permanece: 74,8% das crianças de 4 e 5 frequentam  escola, sendo que entre os 20% mais ricos esta taxa é de  92% e entre os 20% mais pobres é de 67,8%. No ensino médio, a taxa de matrícula é de 51,1% da população de 15 a 17 anos.

Para além de sua função propriamente pedagógica, nos lugares de maior pobreza, a escola adquire importância maior, por ser um dos poucos, senão o único serviço público disponível. É na escola que as crianças recebem suas principais refeições, é nela que são observados e encaminhados problemas de saúde e assistência social. Esta é a razão de o movimento social se concentrar no direito à escola.

No entanto, quando um novo movimento surge reivindicando o direito de as famílias não escolarizarem seus filhos, aí levantam-se vozes contrárias com argumentos bem pouco convincentes. Educadores dizem que a educação domiciliar não garante o aprendizado do convívio com a diferença e pluralidade. Especialistas enaltecem a necessidade da especialização para ensinar as diversas disciplinas. Ora, desde quando a escola é lugar de diversidade? Muito ao contrário, na escola busca-se a homogeneização a todo custo – estudantes separados pela idade, preferencialmente uniformizados, alinhados em carteiras de frente para um único professor, ouvindo todos a mesma aula, lendo o mesmo livro, fazendo as mesmas provas. E também a escola não é o lugar do aprendizado especializado. Ali, busca-se garantir o mínimo de todas as disciplinas, o nivelamento pela base, pelo que a maioria é supostamente capaz de aprender seguindo um único método, no mesmo tempo e espaço.

Se quisermos que os jovens aprendam com a diversidade e tenham acesso ao conhecimento especializado, temos que lhes dar acesso à cidade, à rede mundial, aos fóruns públicos. Um programa de formação baseado na pesquisa contínua de dados em ampla diversidade de fontes e acervos, na convivência em grupos heterogêneos interessados em desenvolver projetos comuns e na participação cidadã nos fóruns públicos pode ser empreendido por famílias ou por escolas, desde que haja vontade, dedicação e empenho. E certamente esta é a melhor formação que uma criança pode ter. Precisamos, para isso, superar a disputa entre famílias e escolas pelo direito de educar e reivindicar o direito da criança de receber a melhor educação.

Helena Singer é socióloga com pós-doutorado em Educação e diretora pedagógica da Associação Cidade Escola Aprendiz.


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