Com décadas de atraso, chega ao Brasil o movimento pelo direito das
famílias de educar seus filhos em casa. Grupos criam organizações, já
existe uma associação nacional que será recebida pelo Ministro da
Educação, um projeto de lei tramita no Congresso desde fevereiro, uma
frente parlamentar foi criada no mês passado, a imprensa começa a
noticiar alguns números – seriam cerca de mil famílias educando os
filhos em casa no país, segundo a Folha de S.Paulo. Como a prática ainda
é ilegal, os números não podem ser considerados dados definitivos.
No
mundo, este movimento não é novo. Sites noticiam que nos Estados Unidos
já são cerca de dois milhões de crianças e adolescentes (4% da
população nesta faixa etária) sendo educados em casa; no Reino Unido,
estes números estão na casa das centenas de milhares. A prática já é
oficializada também em Portugal, França, Itália, Espanha, Noruega,
Finlândia, Canadá, México, Rússia, Coréia, Austrália, Nova Zelândia,
Tailândia e África do Sul. Em outros países, a legalização está em
debate, como Suécia, Alemanha, Israel e Japão. Nesse último, pode-se
dizer que o movimento começou pelas crianças, ainda nos anos 90, com
alguns milhares delas se recusando a ir para a escola.
Nos lugares
de maior pobreza, a escola adquire importância maior, por ser um dos
poucos, senão o único serviço público disponível.
No movimento
pela educação domiciliar, unem-se “tribos” tão diversas quanto
evangélicos, negros, anarquistas, hippies ou empresários. Todos
compartilham da ideia de que é prerrogativa das famílias educar seus
filhos, transmitindo seus valores e garantindo a sua integração social.
As
novas tecnologias fortalecem o movimento na medida em que
disponibilizam às famílias todos os recursos necessários para a
empreitada. Já o fracasso da instituição escolar para garantir o
aprendizado das habilidades básicas e para criar um ambiente saudável e
seguro – fracasso atestado pelas múltiplas provas dos governos e
estampado cotidianamente na mídia – oferece a justificativa necessária.
Também
na história da educação, a proposta não é novidade. No tratado de
Rousseau sobre educação, Emílio é educado por tutores. Nos anos 70,
ganhou visibilidade mundial a proposta do filósofo austríaco radicado no
México Ivan Illich por uma sociedade sem escolas com o livro
Deschooling Society. Naquela mesma década, o americano John Holt cunhou o
termo unschooling. Em português, talvez ambos possam ser traduzidos por
desescolarizar, embora já se discuta a diferença entre os termos e as
propostas decorrentes.
Mas, se a ideia é antiga, disseminada e bem
respaldada, por que demorou tanto a chegar ao Brasil e ainda hoje é
motivo de polêmica? Porque aqui o movimento social pela educação esteve
concentrado nas últimas décadas em garantir o direito à escola a toda
população. Ainda hoje, com imensas desigualdades sociais, ir à escola é
um privilégio.
Para dar conta de uma distorção histórica, até os
anos 90, os esforços concentraram-se no ensino fundamental, que foi
inclusive ampliado de oito para nove anos, e resultados foram
alcançados: dados do PNAD/IBGE de 2009 indicam que 95,3% das pessoas de 6
a 14 anos estão matriculadas neste nível de ensino. A meta passou a
ser, então, a população de 4 a 17 anos, faixa na qual a desigualdade
permanece: 74,8% das crianças de 4 e 5 frequentam escola, sendo que
entre os 20% mais ricos esta taxa é de 92% e entre os 20% mais pobres é
de 67,8%. No ensino médio, a taxa de matrícula é de 51,1% da população
de 15 a 17 anos.
Para além de sua função propriamente pedagógica,
nos lugares de maior pobreza, a escola adquire importância maior, por
ser um dos poucos, senão o único serviço público disponível. É na escola
que as crianças recebem suas principais refeições, é nela que são
observados e encaminhados problemas de saúde e assistência social. Esta é
a razão de o movimento social se concentrar no direito à escola.
No
entanto, quando um novo movimento surge reivindicando o direito de as
famílias não escolarizarem seus filhos, aí levantam-se vozes contrárias
com argumentos bem pouco convincentes. Educadores dizem que a educação
domiciliar não garante o aprendizado do convívio com a diferença e
pluralidade. Especialistas enaltecem a necessidade da especialização
para ensinar as diversas disciplinas. Ora, desde quando a escola é lugar
de diversidade? Muito ao contrário, na escola busca-se a homogeneização
a todo custo – estudantes separados pela idade, preferencialmente
uniformizados, alinhados em carteiras de frente para um único professor,
ouvindo todos a mesma aula, lendo o mesmo livro, fazendo as mesmas
provas. E também a escola não é o lugar do aprendizado especializado.
Ali, busca-se garantir o mínimo de todas as disciplinas, o nivelamento
pela base, pelo que a maioria é supostamente capaz de aprender seguindo
um único método, no mesmo tempo e espaço.
Se quisermos que os
jovens aprendam com a diversidade e tenham acesso ao conhecimento
especializado, temos que lhes dar acesso à cidade, à rede mundial, aos
fóruns públicos. Um programa de formação baseado na pesquisa contínua de
dados em ampla diversidade de fontes e acervos, na convivência em
grupos heterogêneos interessados em desenvolver projetos comuns e na
participação cidadã nos fóruns públicos pode ser empreendido por
famílias ou por escolas, desde que haja vontade, dedicação e empenho. E
certamente esta é a melhor formação que uma criança pode ter.
Precisamos, para isso, superar a disputa entre famílias e escolas pelo
direito de educar e reivindicar o direito da criança de receber a melhor
educação.
Helena Singer é socióloga com pós-doutorado em Educação e diretora pedagógica da Associação Cidade Escola Aprendiz.
Fonte: Portal Aprendiz.
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