Manifestação nos Estados Unidos contra a cultura do estupro. Imagem: Mayra Cotta.
Texto de Mayra Cotta para as Blogueiras Feministas.
Estupros acontecem todos os dias, em todo os países e em todas as
classes sociais. São cometidos por homens com os mais diversos níveis de
educação e renda, contra mulheres das mais distintas afiliações
política e religiosa. Não tem cor, nem etnia.
Mas como o nosso sistema punitivo, a nossa mídia e a nossa indignação
são profundamente seletivos – tanto em relação a quem queremos punir
quanto em relação por quais vítimas iremos nos sensibilizar – o estupro
torna-se visível apenas depois que é filtrado pelo racismo e preconceito
de classe que estruturam nossas relações e instituições. E, ainda
assim, aparece como um fenômeno pontual, individualizado e patologizado –
apenas um monstro ou um louco psicopata faria isso com uma mulher,
dizem.
O estupro, contudo, é uma violência tão comum e generalizada que,
quando as feministas de segunda geração, nos anos 60, começaram a
politizar o privado compartilhando umas com as outras suas experiências
individuais, perceberam que quase todas tinham ao menos uma experiência
de violência sexual para compartilhar. Além do convívio diário com o
assédio nas ruas, nos meios de transporte e nas salas de aula, as
mulheres também tinham em comum o fato de já terem sido vítimas de
violência sexual, em episódios que comumente envolviam conhecidos ou
parentes.
Foi nos Estados Unidos de então que o termo “cultura do estupro”
surgiu para denunciar esse contrato social machista que aceita,
incentiva e esconde o estupro, por meio de práticas diárias de
objetificação do corpo feminino e de construção da masculinidade tanto
mais valorizada quanto mais viril é.
Meio século depois, a denúncia da cultura do estupro permanece firme
e, infelizmente, necessária. Em 2014, chegou ao ponto de ser
reconhecida pela Casa Branca como uma questão social gravíssima a ser
combatida. Na época, uma série de acusações de estupro começaram a ser
feitas por e contra estudantes de prestigiadas universidades no país. A
impressionante quantidade de casos desestabilizou os hipócritas – ou os
tão privilegiados que conseguiam mesmo acreditar nisso – que
estabeleciam relações de causalidade entre violência sexual e pobreza ou
falta de educação.
Poucas foram as mulheres, contudo, que se surpreenderam. Afinal, a
cultura do estupro nas universidades estadunidenses apenas reproduz as
práticas comumente toleradas e frequentemente incentivadas socialmente,
seja na rua ou em casa, no bar ou no trabalho.
A diferença é que jovens universitárias da Ivy League fazem parte de
uma elite econômica e intelectual que mais facilmente consegue vocalizar
suas lutas por conta da posição de privilégio que ocupam. Ou seja, é
mais difícil abafar uma denúncia de estupro de uma estudante de Harvard
do que de uma moradora da Zona Oeste do Rio de Janeiro.
A luta contra a violência sexual, portanto, precisa ser tão sistêmica
quanto o é a cultura do estupro. Isso significa uma resistência diária a
todas as piadas, brincadeiras, propagandas de cerveja e de margarina,
fiu-fius, apalpadas e tantas outras práticas tão repugnantes quanto
socialmente aceitas.
Mas isso também significa que só daremos passos definitivos quando
nossa capacidade de nos solidarizarmos com as vítimas e de nos
revoltarmos contra os estupradores não dependa nem dos padrões de
comportamento impostos desde cedo às mulheres, nem da seletividade do
nosso ímpeto punitivo racista e preconceituoso de classe social.
Organizemos nossa indignação coletiva por todas as vítimas – e contra
todos os estupradores.
Autora
Advogada feminista, entusiasta da Política e resistentemente
otimista quanto à possibilidade de um mundo melhor. Formada em Direito
pela Universidade de Brasília, mestre em Direito Criminal pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro e doutoranda em Política pela
New School for Social Research, em Nova York.
FONTE: Texto de Mayra Cotta para as Blogueiras Feministas.
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