Para os jovens, o mundo virtual é um espaço de expressão e descoberta. Mas é preciso orientá-los a reconhecer e a evitar os riscos da internet
Em julho último, um casal de adolescentes de Porto Alegre protagonizou cenas de sexo divulgadas ao vivo por uma câmera ligada a um famoso site de relacionamentos. Mais de 22 mil pessoas assistiram à transmissão, que, por envolver dois menores - ele com 16, ela com 14 anos -, ganhou notoriedade e acabou virando assunto de polícia. O mais curioso (e que soa até ingênuo) foi o motivo que os levou a se expor dessa forma. Segundo o rapaz, a menina perdeu uma aposta em um jogo de cartas online e, por isso, teria de pagar uma "prenda". Esse episódio lamentável mostra como é preciso orientar os jovens quanto ao uso de celulares, de videogames e principalmente da internet - uma das grandes paixões da moçada. A relação dos jovens com a tecnologia é o último tema da série Desenvolvimento Juvenil.
No que diz respeito à rede mundial de computadores, os especialistas apontam a dificuldade dos jovens para entender que é preciso se comprometer com as ações realizadas no mundo virtual. "Muitos pensam que o ciberespaço não tem efeito algum sobre o mundo real", explica o psicólogo Tiago Corbisier Matheus, do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, e autor de livros sobre o assunto. Quanto à recusa de se responsabilizar pelas próprias ações, nada de novo: é característica da adolescência. Entretanto, embora não tenha mudado o comportamento dos jovens, a tecnologia trouxe novos espaços e ferramentas para as manifestações típicas dessa fase da vida. A internet e os games, por exemplo, permitem a experimentação de papéis sociais, ampliam o leque de relações interpessoais e o contato com informações, fornecendo elementos para a formação da identidade. Para pais e professores, esses recursos são muito novos, o que inibe a exploração. No entanto, é preciso conhecê-los para ajudar a moçada a construir uma relação saudável com eles.
Para os adolescentes, a tecnologia exerce fascínio porque é uma das poucas áreas em que eles têm desempenho melhor que os adultos. "Eles são mais disponíveis para entrar em contato com o novo e se arriscam a testar coisas que as gerações anteriores olham com curiosidade, mas têm receio de não aprender ou medo de se sentir incapazes e ultrapassadas", ressalta Matheus. Os adolescentes podem eleger ídolos, criar culturas próprias distantes da figura de autoridade dos pais e familiares e construir relacionamentos com certo distanciamento e liberdade (essencial na busca da autonomia que caracteriza a puberdade).
A importância de assinalar o limite entre público e privado
CAMILA* Segredos onlineEu falo como minha melhor amiga pela webcam todos os dias. Faz mais de cinco anos que somos grudadas, mas nunca nos encontramos pessoalmente. Ela mora no Sul, longe demais. Conto tudo pra ela e ela pra mim. Confio mais nela do que nas meninas da escola.
DÁ PARA CONFIAR? Com os amigos virtuais, há risco de não se conhecer bem com quem se está falando
A possibilidade de se verem como sujeitos que têm uma história própria, capazes de fazer algo sozinhos e de experimentar no mundo virtual coisas em que temem fracassar na realidade concreta, explica a necessidade de estarem conectados o tempo todo. Querer conquistar privacidade em relação aos pais é uma das marcas da adolescência. "Os jovens começam a esconder alguns assuntos da família e a lutar pelo direito de ter segredos. Eles precisam ter e fazer coisas em espaços fora do núcleo familiar para serem vistos como sujeito com vontade própria", ressalta Vanessa Vicentin, especialista em Psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela Universidade de São Paulo (USP). A internet passa a ser o palco dessa busca pela individualidade, mas acaba gerando uma situação paradoxal: se por um lado é um lugar longe dos olhos dos pais, por outro torna-se a tela em que a exposição atinge graus extremos: adolescentes postam dados pessoais importantes, narram o dia a dia para todos, falam sobre coisas privadas com quem não conhecem e publicam fotos e vídeos, muitas vezes comprometedores - como ocorreu com o casal gaúcho citado no início do texto.
"Só quando as coisas dão errado é que eles percebem que exageraram na exposição", afirma Vanessa. Em muitos casos, os pais também têm uma parcela de culpa. Segundo as pesquisas, os jovens que mais se expõem na rede são filhos de pessoas que não respeitam a privacidade deles no mundo real - leem os diários, checam as ligações e mensagens dos celulares e não constroem uma relação de confiança e de respeito.
Ajudar a construir a noção de privacidade é a melhor contribuição dos adultos. Uma possibilidade é dialogar sobre o comportamento de cada jovem no mundo virtual: como ele está lidando com os amigos da web? O que ele conta ou não? Que fotos e vídeos tem postado nos sites de relacionamento social? Agindo assim, pais e professores intervêm sem invadir o espaço da garotada. O ponto central é mostrar a existência de coisas que podem ser divididas com todos e outras que são particulares. "Com boas orientações e atenção emocional, o adolescente aprende a reconhecer a privacidade e terá no mundo virtual um comportamento tão ou mais saudável do que no real", completa Vanessa.
Amigo virtual deve ser só mais um no círculo de amizades do jovem
GUSTAVO* Meu outro corpo Nos games, escolho os lutadores mais diferentes de mim. Sou pequeno e sempre quero ser um grandão musculoso, mau e poderoso. Quando conheço alguém na net, digo que sou mais velho, mais forte e mais bonito do que me acho. Todo mundo finge. Não é tudo virtual? Então não tem problema.
PODER DIGITAL Nas vidas concebidas no mundo virtual, o perigo é o jovem idealizar o ser imaginado
Os avanços tecnológicos também trouxeram uma nova dinâmica para as relações sociais. Hoje, é muito comum encontrar adolescentes que namorem a distância ou mantenham contatos estritamente virtuais - alguns baseados no companheirismo e na confiança, como indica a fala de Camila*, 16 anos (leia o destaque na página anterior). "Em certo sentido, as amizades pela internet têm a mesma função dos amigos imaginários na infância, especialmente para os mais tímidos", argumenta Matheus. "Eles acabam encontrando em uma pessoa distante as características que esperam de alguém com quem gostariam de se relacionar."
Em tese, não há nada de errado nisso: esse novo meio de contato pode funcionar como um treinamento para futuras relações sociais, trabalhando aspectos como respeito mútuo e confiança. Mas há três aspectos que merecem cuidado. Primeiro, é preciso levar os adolescentes a perceber a necessidade dos relacionamentos no mundo real - e do aprendizado que só o contato pessoal pode proporcionar. Segundo, deve-se redobrar a atenção para os perigos da rede, que vão da pedofilia à propagação de ideias criminosas, como o nazismo e o preconceito racial. Acompanhar a trajetória online dos jovens, sempre por meio do debate franco, auxilia cada um a analisar seus contatos e a não se expor a riscos.
O terceiro ponto de atenção diz respeito à possibilidade de criar personagens e vivê-los em games, sites de relacionamento e bate-papos virtuais. Imaginar e divulgar características distintas das concretas é prática corrente na internet, como mostra o depoimento de Gustavo*, 15 anos (leia o destaque acima). O problema começa quando se desenvolve uma fixação pelo ser concebido nessa realidade paralela, algo que em casos extremos pode gerar uma cisão entre as duas vidas (a tecnológica e a biológica), atrapalhando muito a formação da personalidade. "Quando o papel idealizado na internet passa a ser um objetivo da vida real, a frustração é inevitável. Trabalhar a diferença entre fantasia e realidade é o caminho para uma relação positiva com as situações imaginadas", diz Matheus.
Por fim, vale ponderar um aspecto da vida contemporânea turbinado fortemente pelas tecnologias: o imediatismo. A possibilidade de encontrar tudo ao alcance de um clique, de falar com qualquer pessoa instantaneamente, de baixar vídeos e músicas em banda larga pode dar a impressão - falsa - de que não há espera nesse mundo. "Hoje, os jovens estão cada vez menos reflexivos. Imersos na tela do computador, eles não conseguem parar para pensar sobre a sociedade ou si mesmos. Há sempre algo para ver ou fazer ou alguém com quem falar", argumenta Vanessa. Mas os obstáculos reais, que não podem ser resolvidos aqui e agora, continuam surgindo. Vários deles aparecem na escola, já que aprender requer tempo e dedicação.
Dessa forma, ajudar a garotada a lidar com a impossibilidade de não alcançar todos os desejos rapidamente torna-se ainda mais importante no mundo atual. Enfatizar que grandes projetos (e mesmo pequenos avanços na construção da personalidade) só se concretizam com esforço e persistência é mais um dos desafios na relação dos jovens com o mundo virtual. "Refletir é a melhor forma que o ser humano dispõe para reorganizar seus conhecimentos e entender as próprias emoções", finaliza Vanessa. Essa ação, por enquanto, a tecnologia ainda não conseguiu substituir.
*Os destaques desta reportagem trazem depoimentos por um programa de troca de mensagens instantâneas pela internet de alunos do 9º ano e do Ensino Médio de escolas de São Paulo. Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.
Reportagem sugerida por 1 leitora: Milena Sampaio de Almeida Lôbo de Aguiar, Corumbá, MS
Quer saber mais?
BIBLIOGRAFIA
Adolescer, José Outeiral, 196 págs., Ed. Revinter, tel. (21) 2563-9700, 89 reais
Ideais na Adolescência: Falta (d)e Perspectivas na Virada do Século, Tiago Corbisier Matheus, 200 págs., Ed. Annablume, tel. (11) 3031-1754, 26,25 reais
Quando Chega a Adolescência, Vanessa Vicentin, 128 págs., Ed. Mercado de Letras, tel. (19) 3241-7514, 29 reais
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