O direito ao atendimento universal é uma conquista na medicina moderna brasileira, e colocar esse tema em questão é desnecessário
Por Patricia Iglecio
“Quem você socorreria primeiro: um policial levemente ferido ou um traficante em estado grave?”, foi a enquete feita por Fátima Bernardes, durante o programa “Encontro” que ela apresenta na Globo, na última sexta-feira. Fátima foi amplamente criticada e gerou polêmica nas redes nos últimos dias. De um lado, por figuras conservadoras como Jair Bolsonaro (PSC-RJ), de outro por entidades que atuam na defesa dos direitos humanos.
“Uma política completamente equivocada sobre os Direitos Humanos, onde só a bandidagem encontra guarita contra esses também marginais defensores dos Direitos Humanos”, disse Bolsonaro sobre a enquete, mesmo que Fátima em momento nenhum tenha defendido a vida de um traficante em detrimento a de um policial. O político fez as suas considerações, na segunda-feira (21), durante o velório dos policiais que morreram na queda de um helicóptero, no Rio de Janeiro.
Policias militares se manifestaram em suas redes sociais contra a apresentadora, por defenderem a vida do policial em primeiro lugar. Um vídeo publicado por um PM do Espírito Santo também viralizou nas redes.
No vídeo, fica claro como a enquete despertou o ódio nas redes sociais, tornando banais discussões profundas e históricas sobre a ética médica –“Agora a gente queria fazer a seguinte enquete. Perguntar para a Fátima se ela fosse vítima de estupro, o que a gente não quer que aconteça, mas pode acontecer. Chegando ao local, uma ambulância só pode socorrer uma pessoa” – disse o militar no vídeo.
Especialista em bioética critica enquete
Para Hunderson Furst, editor Jurídico na empresa Grupo Editorial Nacional (GEN) e especialista em bioética, a enquete propõe um retrocesso valorativo da ética médica e dos avanços conquistados na medicina moderna pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).
“O que isso fomenta? Qual é a utilidade dessa discussão? Simplesmente causar uma polêmica que o próprio CFM e o código de ética médica deixam claro que você tem que atender, seja um milionário, seja pobre, mesmo que a pessoa tenha cometido um crime?”
Henderson explica que o direito ao atendimento universal é uma conquista na medicina moderna brasileira, e colocar em questão algo que já foi superado é um desserviço social. “Inclusive, não pode haver qualquer preferência no atendimento. Todo mundo vai ser atendido a despeito de crença, de etnia, de se estava atirando com a polícia ou se estava atirando contra bandido”, pontua.
Ele explica ainda que o único juízo que o médico pode fazer sobre o atendimento é no caso de escassez de equipamento, qual paciente é mais possível salvar. “Ao invés de se perguntar quem deve ser atendido primeiro, deveria se perguntar o porquê de não poder atender ambos. De onde vem a falta de recursos? Nós já estamos tão habituados, tão anestesiados a um sistema de saúde precário e desigual que parece normal se deparar com esse dilema – quem deve ser salvo?”, questiona.
Jogo de marketing
O absurdo da enquete não para na questão ética e no discurso do ódio que instigou. Nesta quinta-feira (24) estreia o filme “Sob pressão”, estrelado por Júlio Andrade e Marjorie Estiano no papel de médicos de um hospital público no Rio.
O filme mostra a chegada ao mesmo tempo de três pacientes em estado grave: uma criança, um policial e um traficante. Dirigido por Andrucha Waddington, o filme mostra médicos sem condições de fazer o socorro correto, de acordo com ele.
“O filme mostra os médicos sem condições de fazer o socorro correto. É um filme nervoso”, adjetiva Stepan Nercessian, que vive o diretor do hospital. “É um filme de ação dentro de um hospital. Ele não para um minuto”, explica Andrucha. Além disso, levanta questionamentos morais e éticos.
“Quem é vítima? Todos: o bandido, o policial, o médico… Ninguém tem amparo. Então, qual seria o critério? Atender quem estiver em pior estado? Numa situação de emergência, me parece uma alternativa”, afirmou Marjorie Estiano, uma das atrizes, em entrevista ao portal Extra.
Posteriormente, o filme deve virar o uma minissérie da Globo e Fátima Bernardes não perdeu a oportunidade de fazer um jogo de marketing durante o seu programa. Parece que então vale tudo para publicizar um filme, mesmo que instigue o discurso do ódio e ultrapasse os limites éticos da medicina.
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